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Nietzsche (GC:2) – filosofia como exegese do corpo?

quinta-feira 12 de dezembro de 2024, por Cardoso de Castro

Qualquer filosofia que coloque a paz mais alta do que a guerra, qualquer ética que conceba negativamente a felicidade, qualquer metafísica, qualquer física que encarem um final, um qualquer estado definitivo, qualquer aspiração, sobretudo estética ou religiosa, possuindo um ao lado, um para-além, um de-fora, um por-cima, autorizam a que se procure saber se não foi a doença que inspirou o seu filósofo. Dissimulam-se inconscientemente as necessidades fisiológicas do homem, sobrecarregam-se com a capa da objetividade do ideal, da ideia pura; leva-se a coisa tão longe que acaba por meter medo; e muitíssimas vezes me perguntei se a filosofia, em geral, não foi até agora uma simples exegese do corpo, um simples erro do corpo. Atrás das mais altas evoluções éticas que guiaram até agora a história do pensamento escondem-se mal-entendidos nascidos da conformação física tanto dos indivíduos como das classes e, finalmente, de raças inteiras. As orgulhosas loucuras da metafísica, as respostas que dá, nomeadamente à questão do valor da vida, podem ser sempre consideradas antes de mais como os sintomas de determinadas constituições físicas; e se estas belas aprovações ou estas belas negações da vida não possuem, cientificamente, consideradas em conjunto, o menor átomo de importância, fornecem apenas mais preciosos elementos ao historiador e ao psicólogo, sendo, como nós dizemos, sintomas do físico, dos seus êxitos ou dos seus malo- gros, da sua riqueza do seu poder da sua soberania na história, ou, ao contrário, dos seus recalques, dos seus cansaços, dos seus. empobrecimentos, do seu pressentimento do fim, da sua vontade de acabar. Espero sempre que um médico filósofo, no sentido excepcional da palavra — quero dizer um médico que estude o problema da saúde geral do povo, da época, da raça, da humanidade —, tenha por fim a coragem de levar a minha suspeita até às suas últimas consequências e se atreva a dizer: até aqui ainda em nenhuma filosofia se tratou da “verdade”, mas sim de outra coisa, digamos de saúde, de futuro, de crescimento, de força, de vida…

(NIETZSCHE  , Friedrich. A Gaia Ciência. Tr. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editores, 2000 (epub))