Página inicial > Existencialismo > Kierkegaard

Kierkegaard

terça-feira 25 de março de 2025, por Cardoso de Castro

(CamusMS)

O que é sensível em Lev Chestov o será talvez ainda mais em Kierkegaard  . Certamente, não é fácil assimilar num autor tão esquivo a enunciados claros. Mas, apesar dos escritos aparentemente opostos, por cima dos pseudônimos, dos jogos e dos sorrisos, sente-se aparecer em toda a extensão dessa obra como que o pressentimento (ao mesmo tempo que a assimilação) de uma verdade que acaba explodindo nos últimos trabalhos: também ele, Kierkegaard  , dá o salto. O cristianismo com que tanto se assustava a sua infância reaparece finalmente para sua face mais dura. Também para ele a antinomia e o paradoxo se tornam critérios do religioso. Assim, aquilo mesmo que fazia desesperar do sentido e da profundidade desta vida lhe dá agora sua verdade e sua clareza. O cristianismo é o escândalo e o que Kierkegaard   procura é simplesmente o terceiro sacrifício exigido por Inácio de Loiola, aquele com que Deus mais se rejubila: “o sacrifício do Intelecto”. Esse efeito do “salto” é curioso, mas não deve mais nos surpreender. Ele faz do absurdo o critério do outro mundo quando é somente um resíduo da experiência deste mundo. “Em seu fracasso”, diz Kierkegaard  , “o crente encontra seu triunfo”.

Eu não tenho de me questionar a que comovente predição se liga essa atitude. Só devo me questionar se o espetáculo do absurdo e seu caráter próprio a legitimam. Sob esse aspecto, sei que não acontece. Apreciando de novo o conteúdo do absurdo, compreende-se melhor o método que inspira Kierkegaard  . Entre o irracional do mundo e a nostalgia revoltada do absurdo, ele não mantém o equilíbrio. Não respeita a relação que, para sermos claros, constitui o sentimento da absurdidade. Certo de não poder escapar ao irracional, pode ao menos se salvar dessa nostalgia desesperada que lhe parece estéril e sem perspectiva. Mas se ele pode ter razão nesse aspecto de seu julgamento, não saberia ser a mesma coisa em sua negação. Se substitui seu grito de revolta por uma adesão furiosa, ei-lo obrigado a ignorar o absurdo que até aqui o iluminava e a divinizar a única certeza que tem a partir de agora: o irracional. O importante, dizia o abade Galiani à Sra. d’Épinay, não é curar, mas viver com os seus males. Kierkegaard   quer curar. Curar é o seu voto enfurecido, o que lhe percorre todo o diário. Todo o esforço de sua inteligência é para escapar à antinomia da condição humana. Esforço tanto mais desesperado quanto ele lhe percebe a inutilidade por clarões, nos momentos, por exemplo, em que fala de si mesmo, como se nem a crença em Deus nem a piedade fossem capazes de lhe dar paz. É assim que, por um atormentado subterfúgio, ele dá a face ao irracional, e a seu Deus os atributos do absurdo, o que injusto, inconsequente e incompreensível. Apenas a inteligência, nele, tenta abafar a reivindicação profunda do coração humano. Já que nada pode ser provado, tudo pode ser provado.

É o próprio Kierkegaard   que nos revela o caminho percorrido. Não estou querendo insinuar nada a respeito, mas como não ler em suas obras os sinais de uma mutilação quase voluntária da alma diante da mutilação consentida sobre o absurdo? É o leitmotiv do Diário. “O que está me faltando é a besta, visto que ela, também ela, faz parte da humanidade destinada… Mas dai-me logo um corpo.” E mais adiante: “Oh! Principalmente na minha adolescência, o que eu não teria dado para ser homem, ainda que seis meses… o que me falta, no fundo, é um corpo e as condições físicas da existência.” Em outro lugar, é o mesmo homem, no entanto, que faz seu o grande grito de esperança que atravessou tantos séculos e entusiasmou tantos corações, salvo o do homem absurdo: “Mas, para o cristão, a morte não é de maneira nenhuma o fim de tudo e implica infinitamente mais esperança do que pode para nós conter a vida, mesmo transbordante de saúde e força.” A reconciliação pelo escândalo é ainda reconciliação. Ela talvez permita, como se vê, arrancar a esperança de seu contrário que é a morte, mas ainda que a simpatia nos deixe inclinados para essa atitude, é preciso dizer, contudo, que o descomedimento não justifica nada. Diz-se, então, que isso excede a medida humana, sendo preciso, portanto, que seja sobre-humano. Mas esse “portanto” é demasiado. Não há nada aqui de certeza lógica. Nem há também probabilidade experimental. Tudo o que posso dizer é que de fato isso excede a minha medida. Se não extraio daí uma negação, pelo menos não quero construir nada em cima do incompreensível. Quero saber se posso viver com o que sei e com isso apenas. Ainda me é dito que a inteligência, nesse caso, deve sacrificar seu orgulho e a razão deve se inclinar. Mas se reconheço os limites da razão, não chego ao ponto de negá-la, reconhecendo seus poderes relativos. Quero somente me manter nesse caminho médio em que a inteligência pode permanecer clara. Se tem nisso o seu orgulho, não vejo razão suficiente para renunciar a ele. Nada mais profundo, por exemplo, que a visão de Kierkegaard   segundo a qual o desespero não é um fato mas um estado: o próprio estado do pecado. Pois o pecado é que afasta de Deus. O absurdo, que é o estado metafísico do homem consciente, não conduz a Deus9. Talvez essa noção se esclareça se eu arriscar esta enormidade: o absurdo é o pecado sem Deus.

Trata-se de viver nesse estado de absurdo. Sei sobre o que assenta, esse espírito e esse mundo escorados um contra o outro sem poder se abraçar. Indago o estilo de vida desse estado e o que me é proposto lhe omite o fundamento, nega um dos termos da oposição dolorosa, me obriga a uma demissão. Pergunto o que acarreta a condição que reconheço como sendo minha, sei que ela compreende obscuridade e ignorância mas me garantem que essa ignorância explica tudo e que essa noite é a minha luz. Mas não se reponde aqui à minha intenção e esse lirismo delirante não pode me esconder o paradoxo. Kierkegaard   pode gritar, advertir: “Se o homem não tinha uma consciência eterna, se no fundo de todas as coisas ele só tinha um poder selvagem e borbulhante produzindo todas as coisas, o grande e o fútil, no turbilhão de obscuras paixões, se o vazio sem fundo que nada pode preencher se escondia sob todas as coisas, que seria pois a vida senão o desespero?” Esse grito não tem como parar o homem absurdo. Procurar o que é verdadeiro não é procurar o que é desejável. “Que seria pois a vida?” É preciso, como o burro, nutrir-se das rosas da ilusão. Antes de se resignar à mentira, o espírito absurdo prefere adotar sem temor a resposta de Kierkegaard  : “o desespero”. Bem pesadas as coisas, uma alma decidida sempre saberá se sair bem.