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Análise da ideia de fenômeno em Sartre
Análise da ideia de fenômeno em Sartre (Gaboriau4)
1. A intenção de Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
é clara: recusar o dualismo que opõe interior e exterior, lado certo e lado errado, etc., num mesmo existente. Modos de falar perigosos, capazes de albergar a ideia de uma realidade oculta, que esvazia toda a verdade, e de uma aparência que seria ilusória; de uma “verdadeira natureza” impossível de atingir, e de uma zona fenoménica que não valeria a pena o esforço. Dualismo obsoleto.
2. Ao mesmo tempo”, afirma Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
, ”a dualidade entre potência e ato cairá. Tudo é ato”, e portanto só o fenómeno é em ato.
Mas este “ao mesmo tempo” não é evidente. Repudiar um dualismo em que o idealista e o racionalista têm o seu lugar, em detrimento de uma aparência consistente, opor-se a uma dicotomia do fenómeno e do númeno: tudo bem. O que é essencial, à partida, é a unidade do ser-que-aparece-(ser). Segue-se, então, que a estrutura desta identidade concreta não apresenta falhas? que tudo está uniformemente em ato? realidade sem mistura? Entre a rejeição de um dualismo abusivo, contraditório com o ser do fenómeno, e a negação do que constituiria uma dialética interna a este ser fenomenal, há um passo que não pode ser transposto, nem mesmo por deslize. Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
ignora-o…
3. … e depois, pela mesma suposta razão, sentencia: “É por isso que podemos rejeitar o dualismo da aparência e da essência”.
Estaremos de acordo em repudiar todo o dualismo, até ao ponto de cair no monismo, até ao ponto de deixar de distinguir o que um olhar atento se recusa a identificar pura e simplesmente? Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
identifica absolutamente: “A aparência… é a essência”. Mas o que é que ele entende por essência?
4. “A essência de um existente… é a lei manifesta que preside à sucessão das suas aparências, é a razão da série” (ib., p. 12).
A questão a colocar a Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
seria, então, esta: será que a lei que preside, a razão desta série manifesta, em suma, a essência de um existente fenomenal é absolutamente idêntica a essa aparência da qual ele próprio diz que está sujeita a uma lei, raciocinada por ela, explicada por ela? Nós dizemos: evidentemente que não. A identidade relativa explica por que razão confundimos o explicado e o explicador, a série e a sua razão, as espigas e o molho; mas impõe também uma distinção, ela própria relativa, entre estes dois aspectos da realidade (um submetido, o sujeito que controla na realidade a aparência, o outro expresso, o objeto).
5. No n.º 2, o autor desenvolve uma lógica que merece atenção por todas as consequências que dela decorrem. Vamos relê-lo, sublinhando as ligações:
a. “O ser de um existente é precisamente o que ele parece ser
b. É assim que chegamos à ideia de um fenómeno que é relativo-absoluto
c. O fenómeno permanece relativo porque ( = razão)
d. aparecer pressupõe essencialmente alguém a quem aparecer”.
Note-se, com a presença do silogismo demonstrativo, a falha que o invalida sob uma aparência científica e necessária:
O ser de um existente é aparecer, no sentido de “ser um fenómeno”.
Mas aparecer, no sentido de “ser percepcionado” (ou percetível), pressupõe por essência alguém a quem possa (eventualmente) ser dado a conhecer.
Deste maior e menor, segue-se em conclusão o que queríamos demonstrar, mas que já está implícito, para ter algum sentido, no próprio maior: o ser de um existente reduzido ao que dele se percebe fenomenicamente, reduzido ao que ele parece ser, “precisamente”, isto é, com exclusão de toda a substância.
Ora, aqui está, em jogo, uma petição de princípio da qual depende todo o Ser e o Nada. Para além da palavra “aparecer”, que tem dois significados (de modo que a frase, mais uma vez, não é uma pura tautologia e tem um significado, como é normal supor à partida), o silogismo tem quatro termos.
“Aparecer”, no sentido de ser efetivamente percebido, implica uma relação entre o fenómeno e o perceptor. Esta relação é real no perceptor que a toma nota, mas não é interna ao fenómeno enquanto tal; esta relação não é, portanto, essencial ao próprio fenómeno, no segundo sentido da palavra “aparecer” (ser-fenómeno). O fato de ser conhecido não traz nada de real ao fenómeno enquanto tal: combinar os dois sentidos da palavra “aparecer” para afirmar isso é assunto nosso e não muda nada.
6. “O fenómeno permanece relativo": sim, mas como tal não é relativo a alguém. Será relativo a alguém que, ao conhecê-lo, se colocará de fato em relação real com ele, para o conhecer, sem que daí resulte uma nova relação ao nível do fenómeno. Como tal, o fenómeno é relativo a alguma coisa, não a alguém; relativo precisamente àquilo que relaciona, manifesta, faz aparecer; relativo, do mesmo modo, à resposta que suscita no interpelante; relativo, pois, essencialmente àquilo de que é a aparência; relativo àquilo que dá a conhecer; relativo ao seu termo, bem como à sua hipo-tese (hipótese cognoscível, entenda-se, por uma outra relação, por conta do conhecedor, a quem cabe então essa nova operação).
7. A tendência de Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
é a de deixar de fora algo — a substância — para colocar o fenómeno em estreita relação com uma certa transcendência, em suma, para o absolutizar. “O fenómeno do ser exige a transfenomenalidade do ser” (p. 16). Impaciência das mediações:
“O ser ser-nos-á revelado por um qualquer meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc., e a ontologia será a descrição do fenómeno do ser tal como ele se manifesta, isto é, sem intermediário” (p. 14).
8. Mas se afugentarmos o subjacente, ele regressa a galope. Tal como a rejeição da natureza humana por parte de Sartre
Sartre
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JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
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o obriga a admitir “a condição humana” (cf. aqui, p. 259), também a substância que rejeitou o transborda e reclama o seu lugar:
“O existente é fenómeno, isto é, designa-se a si mesmo como um conjunto organizado de qualidades” (p. 15).
Ora, o que é que faz encaixar estas qualidades excluindo as outras, senão a própria encruzilhada onde elas se encaixam, que podemos chamar como quisermos, mas cujo jogo se revela crucial ao nível dos fenómenos para a sua distribuição e nomeação? Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
tem, pois, razão em rejeitar “o nominalismo de Poincaré, que definia uma realidade física (a corrente eléctrica, por exemplo) pela soma das suas diversas manifestações” e em aprovar Duhem “que fazia do conceito a unidade sintética dessas manifestações”, mas será a diferença assim tão grande? A soma impõe o conceito:
“O ser fenomenal manifesta tanto a sua essência como a sua existência, e não é senão a série bem ligada dessas manifestações” (pp. 12-13).
Bem ligadas? Mas o que é esta ligação, este novo vinculum substantiale, senão, para além do nome rejeitado, a coisa que se impõe? Não se pode evitar este elo intermédio sem mais nem menos; ele regressa, muito depois de se ter procurado eliminá-lo, regressa com todas as letras:
“Trata-se de possuir, não o elemento em si, mas o tipo de existência em si que se exprime por meio desse elemento: é a homogeneidade da substância que se quer possuir sob a espécie da neve; é a impenetrabilidade do em si e a sua permanência intemporal que se quer apropriar sob a espécie da terra ou da rocha, etc.” (p. 675).
E ainda:
“Aquilo de que fundamentalmente nos queremos apropriar num objeto é o seu ser e é o mundo…. Por detrás do fenómeno, procuro possuir o ser do fenómeno. Mas este ser, que é muito diferente, como vimos, do fenómeno do ser, é o ser-em-si e não apenas o ser de uma coisa particular” (p. 687).
Nisto devemos talvez ver um apego misterioso e infinitamente respeitável, que nos recusamos a nomear, mas não a sentir:
O existente designa-se a si mesmo e não sem ser. O ser é simplesmente a condição de todo o desvelamento: é o ser-para-o-desvelamento, não o ser-desvelado. Qual é então o sentido desta ultrapassagem em direção ao ontológico de que fala Heidegger? Certamente, posso ir para além desta mesa ou desta cadeira em direção ao seu ser e colocar a questão do ser da mesa ou do ser da cadeira. Mas, nesse momento, desvio os olhos da mesa-fenómeno para olhar o ser-fenómeno, que já não é a condição de todo o desvelamento, mas que é ele próprio um desvelamento, uma aparição, e que, como tal, precisa, por sua vez, de um ser com base no qual se desvela” (p. 15).
Notemos, por fim, que não é preciso “desviar o olhar” das coisas-fenómenos para que uma “questão” se coloque no próprio fenómeno: uma questão cujo primeiro elemento de resposta — “substancial” e relativo — não prejulga “um ser sobre cujo fundamento se desvela” no final.
9. Será que Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre
JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês
aponta para uma espécie de relação transcendental das coisas e qualidades perceptíveis com os perceptores, sem a qual a sua existência não teria qualquer significado: uma relação permanente e distinta da relação de razão (transitória) que eles “adquirem” (por assim dizer) através do conhecimento efetivo de tal e tal coisa? Os fenómenos são, de fato, relativos a alguma coisa — a substância — mas são também relativos aos conhecedores da substância, que assim lhes dão sentido. O objetivo e o significado do cosmos passam pela substância. A falha seria sempre a de pensar que o ser da coisa — o ser “suposto” pelo fenómeno — se esgota no fenómeno. Idealismo e fenomenologia subjectiva.