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Análise da ideia de fenômeno em Sartre
sexta-feira 12 de outubro de 2007, por
Análise da ideia de fenômeno em Sartre (Gaboriau4)
1. A intenção de Sartre é clara: recusar o dualismo que opõe interior e exterior, lado certo e lado errado, etc., num mesmo existente. Modos de falar perigosos, capazes de albergar a ideia de uma realidade oculta, que esvazia toda a verdade, e de uma aparência que seria ilusória; de uma “verdadeira natureza” impossível de atingir, e de uma zona fenoménica que não valeria a pena o esforço. Dualismo obsoleto.
2. Ao mesmo tempo”, afirma Sartre , ”a dualidade entre potência e ato cairá. Tudo é ato”, e portanto só o fenómeno é em ato.
Mas este “ao mesmo tempo” não é evidente. Repudiar um dualismo em que o idealista e o racionalista têm o seu lugar, em detrimento de uma aparência consistente, opor-se a uma dicotomia do fenómeno e do númeno: tudo bem. O que é essencial, à partida, é a unidade do ser-que-aparece-(ser). Segue-se, então, que a estrutura desta identidade concreta não apresenta falhas? que tudo está uniformemente em ato? realidade sem mistura? Entre a rejeição de um dualismo abusivo, contraditório com o ser do fenómeno, e a negação do que constituiria uma dialética interna a este ser fenomenal, há um passo que não pode ser transposto, nem mesmo por deslize. Sartre ignora-o…
3. … e depois, pela mesma suposta razão, sentencia: “É por isso que podemos rejeitar o dualismo da aparência e da essência”.
Estaremos de acordo em repudiar todo o dualismo, até ao ponto de cair no monismo, até ao ponto de deixar de distinguir o que um olhar atento se recusa a identificar pura e simplesmente? Sartre identifica absolutamente: “A aparência… é a essência”. Mas o que é que ele entende por essência?
4. “A essência de um existente… é a lei manifesta que preside à sucessão das suas aparências, é a razão da série” (ib., p. 12).
A questão a colocar a Sartre seria, então, esta: será que a lei que preside, a razão desta série manifesta, em suma, a essência de um existente fenomenal é absolutamente idêntica a essa aparência da qual ele próprio diz que está sujeita a uma lei, raciocinada por ela, explicada por ela? Nós dizemos: evidentemente que não. A identidade relativa explica por que razão confundimos o explicado e o explicador, a série e a sua razão, as espigas e o molho; mas impõe também uma distinção, ela própria relativa, entre estes dois aspectos da realidade (um submetido, o sujeito que controla na realidade a aparência, o outro expresso, o objeto).
5. No n.º 2, o autor desenvolve uma lógica que merece atenção por todas as consequências que dela decorrem. Vamos relê-lo, sublinhando as ligações:
a. “O ser de um existente é precisamente o que ele parece ser
b. É assim que chegamos à ideia de um fenómeno que é relativo-absoluto
c. O fenómeno permanece relativo porque ( = razão)
d. aparecer pressupõe essencialmente alguém a quem aparecer”.
Note-se, com a presença do silogismo demonstrativo, a falha que o invalida sob uma aparência científica e necessária:
O ser de um existente é aparecer, no sentido de “ser um fenómeno”.
Mas aparecer, no sentido de “ser percepcionado” (ou percetível), pressupõe por essência alguém a quem possa (eventualmente) ser dado a conhecer.
Deste maior e menor, segue-se em conclusão o que queríamos demonstrar, mas que já está implícito, para ter algum sentido, no próprio maior: o ser de um existente reduzido ao que dele se percebe fenomenicamente, reduzido ao que ele parece ser, “precisamente”, isto é, com exclusão de toda a substância.
Ora, aqui está, em jogo, uma petição de princípio da qual depende todo o Ser e o Nada. Para além da palavra “aparecer”, que tem dois significados (de modo que a frase, mais uma vez, não é uma pura tautologia e tem um significado, como é normal supor à partida), o silogismo tem quatro termos.
“Aparecer”, no sentido de ser efetivamente percebido, implica uma relação entre o fenómeno e o perceptor. Esta relação é real no perceptor que a toma nota, mas não é interna ao fenómeno enquanto tal; esta relação não é, portanto, essencial ao próprio fenómeno, no segundo sentido da palavra “aparecer” (ser-fenómeno). O fato de ser conhecido não traz nada de real ao fenómeno enquanto tal: combinar os dois sentidos da palavra “aparecer” para afirmar isso é assunto nosso e não muda nada.
6. “O fenómeno permanece relativo": sim, mas como tal não é relativo a alguém. Será relativo a alguém que, ao conhecê-lo, se colocará de fato em relação real com ele, para o conhecer, sem que daí resulte uma nova relação ao nível do fenómeno. Como tal, o fenómeno é relativo a alguma coisa, não a alguém; relativo precisamente àquilo que relaciona, manifesta, faz aparecer; relativo, do mesmo modo, à resposta que suscita no interpelante; relativo, pois, essencialmente àquilo de que é a aparência; relativo àquilo que dá a conhecer; relativo ao seu termo, bem como à sua hipo-tese (hipótese cognoscível, entenda-se, por uma outra relação, por conta do conhecedor, a quem cabe então essa nova operação).
7. A tendência de Sartre é a de deixar de fora algo — a substância — para colocar o fenómeno em estreita relação com uma certa transcendência, em suma, para o absolutizar. “O fenómeno do ser exige a transfenomenalidade do ser” (p. 16). Impaciência das mediações:
“O ser ser-nos-á revelado por um qualquer meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc., e a ontologia será a descrição do fenómeno do ser tal como ele se manifesta, isto é, sem intermediário” (p. 14).
8. Mas se afugentarmos o subjacente, ele regressa a galope. Tal como a rejeição da natureza humana por parte de Sartre o obriga a admitir “a condição humana” (cf. aqui, p. 259), também a substância que rejeitou o transborda e reclama o seu lugar:
“O existente é fenómeno, isto é, designa-se a si mesmo como um conjunto organizado de qualidades” (p. 15).
Ora, o que é que faz encaixar estas qualidades excluindo as outras, senão a própria encruzilhada onde elas se encaixam, que podemos chamar como quisermos, mas cujo jogo se revela crucial ao nível dos fenómenos para a sua distribuição e nomeação? Sartre tem, pois, razão em rejeitar “o nominalismo de Poincaré, que definia uma realidade física (a corrente eléctrica, por exemplo) pela soma das suas diversas manifestações” e em aprovar Duhem “que fazia do conceito a unidade sintética dessas manifestações”, mas será a diferença assim tão grande? A soma impõe o conceito:
“O ser fenomenal manifesta tanto a sua essência como a sua existência, e não é senão a série bem ligada dessas manifestações” (pp. 12-13).
Bem ligadas? Mas o que é esta ligação, este novo vinculum substantiale, senão, para além do nome rejeitado, a coisa que se impõe? Não se pode evitar este elo intermédio sem mais nem menos; ele regressa, muito depois de se ter procurado eliminá-lo, regressa com todas as letras:
“Trata-se de possuir, não o elemento em si, mas o tipo de existência em si que se exprime por meio desse elemento: é a homogeneidade da substância que se quer possuir sob a espécie da neve; é a impenetrabilidade do em si e a sua permanência intemporal que se quer apropriar sob a espécie da terra ou da rocha, etc.” (p. 675).
E ainda:
“Aquilo de que fundamentalmente nos queremos apropriar num objeto é o seu ser e é o mundo…. Por detrás do fenómeno, procuro possuir o ser do fenómeno. Mas este ser, que é muito diferente, como vimos, do fenómeno do ser, é o ser-em-si e não apenas o ser de uma coisa particular” (p. 687).
Nisto devemos talvez ver um apego misterioso e infinitamente respeitável, que nos recusamos a nomear, mas não a sentir:
O existente designa-se a si mesmo e não sem ser. O ser é simplesmente a condição de todo o desvelamento: é o ser-para-o-desvelamento, não o ser-desvelado. Qual é então o sentido desta ultrapassagem em direção ao ontológico de que fala Heidegger? Certamente, posso ir para além desta mesa ou desta cadeira em direção ao seu ser e colocar a questão do ser da mesa ou do ser da cadeira. Mas, nesse momento, desvio os olhos da mesa-fenómeno para olhar o ser-fenómeno, que já não é a condição de todo o desvelamento, mas que é ele próprio um desvelamento, uma aparição, e que, como tal, precisa, por sua vez, de um ser com base no qual se desvela” (p. 15).
Notemos, por fim, que não é preciso “desviar o olhar” das coisas-fenómenos para que uma “questão” se coloque no próprio fenómeno: uma questão cujo primeiro elemento de resposta — “substancial” e relativo — não prejulga “um ser sobre cujo fundamento se desvela” no final.
9. Será que Sartre aponta para uma espécie de relação transcendental das coisas e qualidades perceptíveis com os perceptores, sem a qual a sua existência não teria qualquer significado: uma relação permanente e distinta da relação de razão (transitória) que eles “adquirem” (por assim dizer) através do conhecimento efetivo de tal e tal coisa? Os fenómenos são, de fato, relativos a alguma coisa — a substância — mas são também relativos aos conhecedores da substância, que assim lhes dão sentido. O objetivo e o significado do cosmos passam pela substância. A falha seria sempre a de pensar que o ser da coisa — o ser “suposto” pelo fenómeno — se esgota no fenómeno. Idealismo e fenomenologia subjectiva.