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Ortega y Gasset (1994:170-171) - viver é decidir

terça-feira 13 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

Com tudo isto temos avançado notavelmente nesta excursão vertical, nesta descida ao profundo ser da nossa vida. Na fundura onde agora estamos aparece-nos o viver como um sentirmo-nos forçados a dizer o que vamos ser. Já não nos contentaremos com dizer, como ao princípio: vida é o que fazemos, é o conjunto das nossas ocupações com as coisas do mundo, porque observámos que todo esse fazer e essas ocupações não nos vêm automaticamente, mecanicamente impostas, como o repertório de discos ao gramofone, mas são decididas por nós, que este ser decididas é o que têm de vida; a execução é, em grande parte, mecânica.

O grande facto fundamental com que eu desejava pôr-vos em contacto está já aí, já o exprimimos: viver é constantemente decidir o que vamos ser. Não percebem o fabuloso paradoxo que isto encerra? Um ser que consiste, mais que no que é, no que vai ser, portanto, naquilo que ainda não é! Pois este essencial, abismático paradoxo é a nossa vida. Não tenho culpa disso. Assim é em rigorosa verdade.

Mas talvez pensem agora alguns de vocês isto: «De quando cá viver vai ser isso — decidir o que vamos ser! Desde há pouco estamos aqui a escutá-lo, sem decidir nada, e, contudo, quem pode duvidar?, a viver». Ao que eu responderia: «Meus senhores, durante este tempo não fizeram mais que decidir uma e outra vez o que iam ser. Trata-se de uma das horas menos culminantes da vossa vida, mais condenadas a relativa passividade, dado que vocês são ouvintes. E, contudo, coincide exatamente com a minha definição. Eis aqui a prova: enquanto vocês me escutavam, alguns de vocês vacilaram mais de uma vez entre deixar de me dar atenção e dedicar-se às [170] vossas próprias meditações ou continuar generosamente a escutar com solicitude tudo o que dizia. Decidiram-se por uma ou por outra destas atitudes, por ser atentos ou distraídos, por pensar neste tema ou noutro, e isso, pensar agora sobre a vida ou sobre outra coisa é o que é agora a vossa vida. E, não menos, os que não vacilaram, que permaneceram decididos a escutar-me até ao fim; momento após momento, terão tido que nutrir novamente essa resolução para mantê-la viva, para continuar atentos. As nossas decisões, mesmo as mais firmes, têm que receber constante corroboração, que ser sempre de novo carregadas como uma escopeta onde a pólvora se inutiliza; têm que ser, em suma, re-decididas. Ao entrar por essa porta tinham vocês decidido o que iam ser: ouvintes; e depois reiteraram muitas vezes o vosso propósito; de outro modo, vocês ter-me-iam escapado pouco a pouco de entre as mãos cruéis de orador.

E agora basta-me tirar a imediata consequência disto: se a nossa vida consiste em decidir o que vamos ser, quer dizer-se que na própria raiz da nossa vida há um atributo temporal: decidir o que vamos ser, portanto, o futuro. E, sem parar, recebemos agora, uma após outra, toda uma fértil colheita de averiguações. Primeira: que a nossa vida é principalmente chocar com o futuro. Eis aqui outro paradoxo. Não é o presente ou o passado o que primeiro vivemos, não; a vida é uma atividade que se executa para diante, e o presente ou o passado descobre-se depois, em relação com esse futuro. A vida é futurição, é o que ainda não é.