Página inicial > Existencialismo > Kierkegaard (TD:48-51) – doença mortal do eu

Kierkegaard (TD:48-51) – doença mortal do eu

quarta-feira 24 de maio de 2023, por Cardoso de Castro

Esta ideia de “doença mortal” deve ser tomada num sentido especial. Ao pé da letra significa um mal cujo termo, cujo desfecho é a morte, e serve então de sinônimo de uma doença da qual se morre. Mas não é em tal sentido que se pode chamar assim o desespero; pois, para o cristão, a própria morte é uma passagem para a vida. Assim sendo, nenhum mal físico é para ele “doença mortal”. A morte põe termo às doenças, mas não é um termo em si mesma. Mas uma “doença mortal” no sentido estrito, significa um mal que resulta na morte, sem mais nada depois dela. E é isso o desespero.

Mas em outro sentido, mais categoricamente ainda, ele é a “doença mortal”. Porque, longe de se morrer propriamente dele, ou de consumar-se esse mal com a morte física, pelo contrário, a sua tortura consiste na impossibilidade de morrer sofrendo-o, tal como na agonia se debate o moribundo com a morte, sem contudo morrer. Assim, estar mortalmente doente é não poder morrer, mas então a vida não permite esperança, e a desesperança é a ausência da última esperança, a ausência da morte. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se esperança na vida; mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se esperança na morte. E quando o perigo cresce a tal ponto que a morte se torna a esperança, o desespero é a desesperança de poder, sequer, morrer.

Nessa última acepção, o desespero é portanto a “doença mortal”, esse suplício contraditório, esse mal do eu: eternamente morrer, morrer sem contudo morrer, morrer a morte. Porque morrer significa que tudo acabou, mas morrer a morte significa viver a sua morte; e vivê-la um só instante, é vivê-la eternamente. Para que se morresse de desespero como de uma doença, o que há de eterno em nós, no eu, deveria poder morrer, como acontece com o corpo. Quimera! No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera não pode morrer; “assim como um punhal de nada vale para matar pensamentos”, jamais o desespero, verme imortal, fogo inextinguível, devora a eternidade do eu, que é seu próprio fundamento. Mas esta destruição de si mesmo, que é o desespero, é impotente e não atinge os seus fins. A sua vontade própria é destruir-se, mas é o que ela não consegue, e esta mesma impotência é uma segunda forma da sua destruição, em que o desespero uma segunda vez erra o seu alvo, a destruição do eu; é, pelo contrário, uma acumulação de ser, ou a própria lei dessa acumulação. Eis o ácido, a gangrena do desespero, esse suplício cujo ácume, voltado para o interior, nos afunda cada vez mais numa autodestruição impotente. Longe de consolar o desesperado, pelo contrário o fracasso do seu desespero em destruí-lo é uma tortura, que reacende seu ressentimento. Porque é acumulando sem cessar, no presente, o desespero passado, que ele desespera por não poder devorar-se nem desfazer-se do seu eu, nem aniquilar-se. Tal é a fórmula de acumulação do desespero, o crescer da febre nesta doença do eu.

O homem que desespera tem um motivo de desespero, é o que se pensa por um momento, não mais que por um momento; pois logo surge o verdadeiro desespero, a verdadeira figura do desespero. Desesperando de uma coisa, no fundo desesperava de si, e agora quer desfazer-se do seu eu. Assim, quando o ambicioso que diz “Ser César ou nada” não consegue ser César, desespera disso. Mas isto tem outro sentido; é por não se ter tornado César que ele não mais suporta ser si mesmo. Não é pois por não se ter tornado César que, no fundo ele desespera, mas do que eu que não o conseguiu. Esse mesmo eu que de outro modo teria feito toda a sua alegria, alegria aliás não menos desesperada, ei-lo agora mais insuportável do que tudo. Olhando isso mais de perto, o insuportável, para ele, não é não se ter tornado César, mas este eu que não se tornou César; ou, melhor, o que ele não suporta é não poder desfazer-se do seu eu. Tê-lo-ia podido, se tivesse se tornado César, mas [50] tal não se deu, e o nosso desesperado não pode mais libertar-se disso. Na sua essência, o seu desespero não varia, pois não possui o seu eu, ele não é ele mesmo. É verdade que não se teria tornado ele mesmo tornando-se César, mas ter-se-ia desfeito do seu eu; não se tornando César, desespera de não poder livrar-se dele. É portanto superficial dizer de um desesperado (o que, sem dúvida, jamais aconteceu), como se fosse o seu castigo, que ele destrói o seu eu. Porque é justamente aquilo de que, para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, de vez que o desesperado ateou fogo a algo que nele é refratário, indestrutível: o eu.