Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

Às coisas, elas mesmas

Página inicial > Fenomenologia > Luijpen (1973:33-34) – Materialismo

Luijpen (1973:33-34) – Materialismo

terça-feira 19 de novembro de 2024

Todos os sistemas materialistas concordam em considerar o homem como o resultado de forças e processos cósmicos, do mesmo modo que as coisas. Um materialista há de dizer, portanto, que o ser do homem será chamado ser-no-mundo no sentido de que, como todas as coisas, é algo no meio das outras coisas mundanas, um fragmento da "natureza", um momento na infinita evolução do cosmos. [1]

Essa ideia não é tão tola que possa ser deixada de lado como se não significasse nada. Exprime uma noção valiosa, dando conta de uma realidade que nunca se deveria negligenciar e levando a sério o fato irrefutável de que o homem só é o que é "devido à materialidade". [2] Desde que não queira menosprezar o significado da matéria, todo filósofo deve ter sentido a tentação de convir com o materialismo. Porque medeia uma distância muito pequena entre a ideia de que o homem é o que é devido à matéria, [3] e a convicção de que o homem não passa de um fragmento da matéria ou uma fase transitória da infinita evolução do cosmos. [4] De fato, não existe conhecimento espiritual sem objetos sensivelmente perceptíveis, sem cérebro, sem processos fisiológicos, sem imagens sensoriais ou sem palavras. Não há amor espiritual sem amor sensível, consciência pessoal sem infra-estruturas biológicas, ato artístico sem expressão na matéria. Assim é possível falar, p. ex., como biólogo, sobre o conhecimento, o amor ou a consciência, e o que o biólogo diz sobre isso tem relação com a realidade.

O exemplo mostra claramente como certo modo de pensar pode ser materialista, sem que o pensador afirme jamais de maneira explícita que o homem é uma coisa. O materialismo será frequentemente camuflado. Apresenta-se o mais das vezes como cientismo, como supervalorização das "ciências", máxime das naturais, que se ocupam ex professo com as coisas, empregando categorias e modelos só a elas relativos. O exercício das ciências torna-se cientismo quando se afirma que não há outras realidades senão as descobertas pelas ciências naturais. Justamente porque o homem só é o que é com base na materialidade é que as ciências podem também dizer algo sobre o homem. Assim, p. ex., será possível, em princípio, achar a diferença fisiológica entre um santo e um malfeitor, e criar, no último, por meio de uma operação, as condições materiais para a virtude. Em princípio, não há inconveniente em afirmar-se que existe uma diferença material entre uma consciência cristã e uma maometana. Muitos alcoólatras e prostitutas não são, em primeiro lugar — ou mesmo nunca o são — "transgressores da lei de Deus", mas gente com defeitos corporais, incompleta, que não deveria ser castigada e sim operada.

Ao compreender tal coisa, verifica-se também quão grande deve ser a tentação de afirmar que as ciências podem exprimir de modo total qualquer realidade. Desde que o homem só é tudo o que ele é por causa da materialidade, nada há no homem sobre que as ciências não possam falar. Por que, pois, não dar o passo fatal, asseverando que, uma vez que o cientista se pronunciou, não há mais nada a dizer ? O filósofo precisa conhecer essa sedução a fim de não minimizar a força e o significado do materialismo. O passo fatal, porém, traz consigo a degenerescência das ciências, transformadas em cientismo, teoria materialista: fora das coisas materiais, de que tratam as ciências da natureza, não há nada digno de ser mencionado.

[LUIJPEN  , Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973]


Ver online : Luijpen


[1"Há… duas concepções clássicas. Uma consiste em tratar o homem como o resultado das influências físicas, fisiológicas e sociológicas que o determinariam de fora e fariam dele uma coisa entre as coisas". Merleau-Ponty, M., Sens et Non-sens, Paris, 1948, p. 142.

[2A. Dondeyne, op. cit. na nota 22, p. 24.

[3"Nossa experiência científica ainda não nos fez conhecer nenhuma força desprovida de base material e nenhum ’mundo espiritual’ fora e acima da natureza". E. Haeckel, Die Welträtsel, Leipzig 1909-1910, p. 259. (Trad. port. de Jayme Filinto: Os Enigmas do Universo, Porto, Chardron, 1908).

[4"Também nós homens somos apenas estados passageiros da evolução da Substância eterna, fenômenos individuais da matéria e energia, cuja nulidade compreendemos ao ver o espaço sem limites e o tempo eterno". E. Haeckel, ibid.