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Ortega: A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS — TU — EU
quarta-feira 23 de março de 2022, por
A língua nos revela que houve um tempo em que os homens não distinguiam, ao menos genericamente, os seres humanos daqueles que o não são, já que lhes parecia serem entendidos por estes e receberem resposta deles. A prova está em que todas as línguas indo-europeias usam de expressões correspondentes à frase espanhola: ’Cómo se llama esa cosa?" — Comment est-ce que l’on appelle ça? — Pelo visto, quando se sabe o nome de uma coisa, já se pode chamar essa coisa; ela percebe o nosso chamado e acode, isto é, põe-se em movimento, reage à nossa ação de. nomeá-la. Ap-pello é "fazer mover-se algo," e igualmente calo em latim, kion e kelomai em grego. No nosso "chamar" pervive o clamare, que é o mesmo calo. Exatamente os mesmos valores semânticos: "chamar" e "fazer mover-se" contém o vocábulo alemão heissen.
Por hora é mister que corrijamos um possível erro de perspectiva que a ordem irremediável do nosso inventário, sobre o que há no mundo, corre o risco de ocasionar. Começamos por analisar a nossa relação com a pedra, prosseguimos com a planta e logo com o animal. Somente depois disso nos enfrentamos com o fato de que nos apareceu o Homem como o Outro. O erro consistiria em que essa espécie de ordem cronológica, a que nos levou a boa ordem analítica, pretenda significar a ordem real em que os conteúdos do nosso mundo nos vão aparecendo. Essa ordem real é precisamente a inversa. O que aparece primeiro a cada um, na sua vida, são os outros homens. Porque todo "cada um" nasce numa família e esta nunca existe isolada,- a ideia de que a família é a célula social é um erro que rebaixa a maravilhosa instituição humana que é a família, maravilhosa, embora seja incômoda, pois, não há coisa humana que, ademais, não seja incômoda. Nasce, assim, o vivente humano entre homens e o primeiro que encontra são eles,- isto é: o mundo em que vai viver começa por ser um "mundo composto de homens," no sentido que a palavra "mundo" tem, quando falamos de "um homem do mundo", de que "é preciso ter mundo", alguém tem "pouco mundo". O mundo humano precede, em nossa vida, ao mundo animal, vegetal e mineral. Vemos todo o resto do mundo como através das grades de uma prisão, através do mundo de homens em que nascemos e em que vivemos. E, como uma das coisas que mais intensa e frequentemente fazem esses homens, em nosso imediato contorno, em sua atividade reciprocante, é falarem uns com os outros e comigo, com o seu falar injetam em mim as suas ideias sobre todas as coisas e eu vejo, em princípio, o mundo todo através dessas ideias recebidas.
Isso significa que a aparição do Outro é um fato que fica sempre como nas costas da nossa vida, porque, quando nos surpreendemos pela primeira vez vivendo, já nos achamos, não somente com os outros e no meio dos outros, mas habituados a eles. Isso nos leva a formular este primeiro teorema social: o homem está a nativitate aberto ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existem aqueles que não são "eu", os Outros; isto é, o Homem ao estar a nativitate aberto ao outro, ao alter que não é ele, é, a nativitate, queira ou não, goste ou não goste, altruísta. É mister, porém, entender essa palavra e toda essa sentença sem acrescentar-lhes o que nelas não está dito. Quando se afirma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre aberto ao Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele, não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificasse.