Fenomenologia, Existencialismo e Hermenêutica

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Nietzsche (ABM:§19) – vontade, querer e livre-arbítrio

domingo 6 de dezembro de 2020

Os filósofos costumam falar da vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo; Schopenhauer   deu a entender que apenas a vontade é realmente conhecida por nós, conhecida por inteiro, sem acréscimo ou subtração. Mas sempre quer me parecer que também nesse caso Schopenhauer   fez apenas o que os filósofos costumam fazer: [23] tomou um preconceito popular e o exagerou. Querer me parece, antes de tudo, algo complicado, algo que somente como palavra constitui uma unidade — e precisamente nesta palavra se esconde o preconceito popular que subjugou a cautela sempre inadequada dos filósofos. Ao menos uma vez sejamos cautelosos, então; sejamos “afilosóficos” — digamos que em todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações, a saber, a sensação do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse “deixar” e “ir” mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos “braços e pernas”, entra em jogo por uma espécie de hábito, tão logo “queremos”. Portanto, assim como sentir, aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do querer, do mesmo modo, e em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há um pensamento que comanda; — e não se creia que é possível separar tal pensamento do “querer”, como se então ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto·, aquele afeto do comando. O que é chamado “livre arbítrio” é, [1] essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem que obedecer: “eu sou livre, ‘ele’ tem que obedecer” — essa consciência se esconde em toda vontade, e assim também aquele retesamento da atenção, o olhar direto que fixa exclusivamente uma coisa, a incondicional valoração que diz “isso e apenas isso é necessário agora”, a certeza interior de que haverá obediência, e o que mais for próprio da condição de quem ordena. Um homem que quer — comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece. Mas agora observem o que é mais estranho na vontade — nessa coisa tão múltipla, para a qual o povo tem uma só palavra: na medida em que, no caso presente, somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; na medida em que, por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sintético conceito do “eu”, toda uma cadeia de [24] conclusões erradas e, em consequência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se agregar ao querer — de tal modo que o querente acredita, de boa-fé, que o querer basta para agir. Como, na grande maioria dos casos, só houve querer quando se podia esperar também o efeito da ordem — isto é, a obediência, a ação —, a aparência traduziu-se em sensação, como se aí houvesse uma necessidade de efeito; em suma, o querente acredita, com elevado grau de certeza, que vontade e ação sejam, de algum modo, a mesma coisa — ele atribui o êxito, a execução do querer, à vontade mesma, e com isso goza de um aumento da sensação de poder que todo êxito acarreta. “Livre arbítrio” é a expressão para o multiforme estado de prazer do querente, que ordena e ao mesmo tempo se identifica com o executor da ordem — que, como tal, goza também do triunfo sobre as resistências, mas pensa consigo que foi sua vontade que as superou. Desse modo o querente junta as sensações de prazer dos instrumentos executivos bem-sucedidos, as “subvontades” ou sub-almas — pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas — à sua sensação de prazer como aquele que ordena. L’effet c’est moi [O efeito sou eu]: [2] ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem construída e feliz, a classe regente se identifica com os êxitos da comunidade. Em todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas “almas”: razão por que um filósofo deve se arrogar o direito de situar o querer em si no âmbito da moral — moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno “vida”. — [NIETZSCHE  , Friedrich. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. Tr. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 23-25]


Ver online : Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro. [ABM]


[1“livre-arbítrio”: Freiheit des Willens, que literalmente quer dizer “liberdade da vontade”. No período que segue, “Um homem que quer” traduz Ein Mensch, der will. O verbo wollen — will, na terceira pessoa do singular — é cognato de Wille, “vontade”. Pouco adiante, “o querente” é nossa tradução para der Wollende. Com exceção do espanhol, os demais tradutores recorrem a paráfrases: "aquele que quer”, el volente, colui che vuole, celui qui veut, he who wills. "Querente” é termo dicionarizado, mas apenas como adjetivo. Como substantivo encontra-se em Fernando Pessoa, nas Páginas de doutrina estética (seleção e prefácio de Jorge de Sena, Lisboa, Inquérito, 1946, p. 30). Mas foi adotado aqui antes de ser pesquisado nos léxicos e achado em Pessoa.

[2L’effet c’est moi: paródia da frase atribuída a Luís XIV, L’Etat c’est moi, “O Estado sou eu”.