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Ge-stell
quarta-feira 24 de janeiro de 2024
Heidegger interpreta Gestell como um substantivo coletivo formado por ge- e stellen, indicando um novo significado ao escrever Ge-stell. Ele a utiliza para expressar o modo pelo qual a “ fissura” conflitual entre terra e mundo é localizada e composta na Gestalt (“ forma, figura” — também de stellen) de uma obra de arte, tal como um templo (GA5 , 52). Posteriormente, Ge-stell aproxima-se da Gestalt do trabalhador, que “mobiliza dispositivos [Bestand] disponíveis como um todo sem distinção” (Jünger , 1932), 160), um conceito introduzido por Ernst Jünger para transmitir a “total mobilização” do tecnocrata devotado à produção, transporte e administração sem propósitos. Ge-stell, “armação”, agora “significa aquilo que reúne este localizar [Stellens] que localiza [stellt], i.e., requisita [herausfordert, ‘desafia, provoca’] o homem para desvelar [entbergen] o real de modo a dele dispor [Bestellens] numa ordem enquanto dispositivos disponíveis [Bestand]” (GA7 , 24). Stellen significa “pôr [algo] de pé”, embora também possua muitos outros sentidos, p.ex., “contribuir, prover” algo para um estoque comum. Dá origem a bestellen, “ordenar [p.ex., materiais], reservar, dispor etc.”. A associação de stellen com “estar/ficar/encontrar-se de pé” (stehen; Stand) sugere uma ligação entre bestellen e Bestand, “continuação; estoque, reserva (disponível), recurso” (GA7 , 20ss). De início, Heidegger associa Technik a Vergegenständlichung, “tornar as coisas Gegenstände, objetos” (GA6T2 , 387). Depois, passa a distinguir entre Bestand e Gegenstand: um avião parado pode ser um Gegenstand, embora voando seja um Bestand, devido ao seu “estar disponível” ao uso que dele fazemos (GA7 , 20s).
Estas palavras por si mesmas não são suficientes para distinguir a tecnologia da produção pré-tecnológica. Bestellen também significa “cultivar” os campos, uma ocupação respeitavelmente pré-tecnológica (GA7 , 18). De que modo uma usina elétrica provida por uma represa no Reno difere do tomo de oleiro ou de um moinho de vento? O torno revela vasos ao “trazê-los à luz”, o moinho de vento revela a energia eólea, mas nenhum deles “requisita [herausfordert]” as energias da natureza nem as acumula para uso futuro (GA7 , 18). Quando fazemos isso, consideramos o todo da natureza como Bestand, como um armazenamento, um dispositivo de reservas; enxergamos os campos como jazidas e como um sítio de riqueza mineral. O homem também é visto como Bestand, como o poder humano explorável e como recurso humano (GA7 , 30; GA6T2 , 387). A visão instrumental da Technik que a toma como um modo de preencher nossos propósitos, diferindo da manufatura pré-tecnológica unicamente pela sua maior eficiência — é “ correta”, mas não “ verdadeira”; ela é certa até o ponto que atinge, mas não alcança a profundeza das coisas (GA7 , 11). Technik revela a terra, o próprio homem, e atualmente até mesmo a lua e os planetas, como Bestand. Não é apenas algo feito por nós, mas uma fase de nosso destino (GA7 , 28s; GA65 , 126, 131). Como todo modo de revelar, ela nos ultrapassa, tanto moldando quanto preenchendo nossos propósitos; pois “ não há uma coisa tal como um homem, que seja simplesmente homem apenas por sua livre vontade” (GA7 , 36). A Technik engole e diminui o mundo, ameaçando assim transformar o homem de um ser-no-mundo em um “animal mecanizado” (GA6T2 , 165, 395; GA65 , 98, 442, 495).
Por que a Technik, a tecnologia industrial, surge no final do século XVIII? Ela não foi apenas uma aplicação da ciência natural matemática do século XVII. A própria ciência envolve a “reunião que requisita para um desvelamento ordenador”, mas nós não o havíamos percebido até que a Technik o evidenciou (GA7 , 25). Ciência e Technik possuem uma fonte comum no modo como compreendem e descobrem as coisas, a metafísica antropocêntrica iniciada por Descartes (GA6T1 , 24). Mas isto também pode ser remontado ao Deus criador da cristandade, à concepção de tudo como ens creatum (GA65 , 107, 111, 126s, 130ss, 348s) e, ainda mais longe, à associação feita por Platão entre techne e as ideias (GA6T1 , 494; GA65 , 135,336).
Como deveríamos reagir à tecnologia? Não por meio de uma fuga para o misticismo, a superstição e o irracionalismo; essas são características essenciais do racionalismo tecnológico (GA6T1 , 531, GA6T2 , 28). Deveríamos refletir sobre os entes de modo a “fundar a clareira, de forma que ela não se torne o vácuo no qual tudo se apresenta como uniformemente ‘inteligível’ e controlável” (GA65 , 349; cf. 391). Podemos particularmente refletir sobre a essência da Technik, “onde há perigo cresce a salvação” (Hölderlin ). Embora não sendo em si mesma tecnológica, essa afirmação relaciona-se com a Technik e nos levará a pensar sobre a arte (GA7 , 39). Fazemos uso inevitável de máquinas que tendem a nos desarraigar de nosso habitat nativo. Deveríamos, no entanto, cultivar a “serenidade”, não deixando que a Technik nos ultrapasse (GA16 , 23ss). [DH ]