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Carneiro Leão (1977:17-18) – não mais se vive fora da ciência
segunda-feira 18 de novembro de 2024
O que significa essa presença inevitável do homem moderno na esfera de domínio da ciência? Participa realmente da vida científica pelo fato de viver às voltas com os produtos da técnica, por repetir de modo semi-inconsciente as linguagens e formulações de uma literatura popular? — Ninguém ousará afirmá-lo com seriedade. Isso todavia não destrói o fato real e inconteste de já não viver mais inteiramente fora da ciência. De já ter perdido a inocência do selvagem. De existir imerso numa tradição cultural, que inclui uma longa história da ciência. Nesse sentido todos os homens da era atômica possuem sempre uma ideia, quando nada, uma ideia de papel do que seja ciência. Se bem se analisa essa imersão histórica do homem, desfaz-se por si mesma a contradição, em que à primeira vista parecemos cair. Dizíamos, de início, que o homem pode, mas não deve necessariamente existir na paisagem da ciência. A ciência não é um fenômeno existencial constitutivo do homem enquanto homem. Não possui a mesma categoria do trabalho, amor e domínio. E precisamente por isso é que o acesso à ciência é sempre um problema de solução difícil. De outro [17] lado, porém, a análise de nossa situação histórica parece revelar o contrário. Já não há nenhuma esfera inteiramente livre do poder científico. A chamada vida pré-científica está toda imbuída de ciência. Trata-se contudo de uma simples aparência. A presença universal da ciência é uma determinada condição histórica, nunca uma estrutura existencial necessária. Trata-se de um fato, que, assim como todo “factum” é uma forma de “facere”, é sempre feito. Um feito, sem dúvida, de peso irresistível, instaurado por determinada configuração das forças históricas, impulsionado por decisões originárias da liberdade, mas mesmo assim, e por ser assim, um feito episódico. O que não nos dá a possibilidade de prever-lhe o futuro, de predizer-lhe profeticamente o fim, antes no-la nega em princípio. Dá-nos apenas a autoconsciência de que o homem, por ser simplesmente homem, não deve exercer sua humanidade na esfera da ciência, como tem de exercê-la na atmosfera do trabalho, do amor, da luta.
[CARNEIRO LEÃO, Emmanuel, Aprendendo a pensar. Volume I. Petrópolis: Vozes, 1977]
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