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La Krisis de Husserl
Vincent Gérard (1999) – A Krisis de Husserl (3)
Krisis III: A questão das vias para a redução
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B. A Via pela Ontologia do Mundo da Vida
- Iso Kern, em seu célebre artigo sobre os caminhos para a redução transcendental, agrupa sob o título de "via pela ontologia" três percursos que se iniciam em uma ontologia positiva ou lógica.
- Os três tipos fundamentais de ontologia que podem ser visados são: 1) a lógica formal e a ontologia formal (mathesis universalis), que contém os princípios formais das ciências e atua como uma doutrina universal da ciência; 2) as ontologias materiais ou regionais, que contêm os princípios particulares ou as normas apriorísticas das ciências positivas particulares e atuam como doutrinas particulares da ciência; 3) a ontologia do mundo da vida, que constitui o fundamento de toda ontologia e de toda lógica científicas.
- A via pela ontologia pode se manifestar, sucessivamente, como o caminho pela lógica formal, pela crítica das ciências positivas, ou pela ontologia do mundo da vida.
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) adota esta última na seção A da terceira parte da Krisis, intitulada: "o caminho que conduz à filosofia transcendental fenomenológica na questão de retorno a partir do mundo da vida pré-dado."
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- O "Conceito Natural de Mundo" Herdado de Avenarius como Problema do Fundamento das Ciências Objetivas (§ 33)
- No início do § 33, Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) afirma que o "problema do modo de ser do mundo da vida" pode ser visto como um problema parcial dentro da questão mais geral de uma fundamentação completa das ciências objetivas. - Essa perspectiva, que prioriza a questão do mundo da vida sob um prisma epistemológico (qual é o fundamento da teoria científica?), foi a forma pela qual Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) abordou o tema até a década de vinte. - O problema central é o da relação de fundamento entre o conceito científico e a intuição pré-conceitual, pois a ciência, como realização do espírito humano, requer um distanciamento do mundo ambiente da vida dado antecipadamente na intuição como sendo universal, ao mesmo tempo em que pressupõe esse mesmo mundo em seu exercício, pois ele continua a ser dado para o cientista.
- Neste contexto, Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) retoma a ideia de Richard Avenarius da restituição do conceito natural de mundo contra as falsificações da metafísica dualista. - O § 56 da Krisis destaca Avenarius entre aqueles que desenvolveram "tentativas conduzidas muito seriamente em vista de uma filosofia transcendental…, tentativas que, no entanto, com seu pretenso radicalismo, não podem alcançar o radicalismo autêntico."
- O retorno das ciências ao seu fundamento implica o retorno à experiência pura, pré-conceitual, antepredicativa: o mundo da simples experiência que fundamenta toda ciência é um mundo que precede também todo pensamento da experiência.
- A tarefa de uma busca pelos fundamentos consiste em percorrer o caminho da experiência muda, sem conceito, primeiro para uma generalidade vaga, típica (suficiente no cotidiano), e depois para os conceitos que uma ciência deve pressupor.
- No entanto, nos anos vinte, a determinação husserliana da experiência que fundamenta as ciências se transforma, o que, por sua vez, modifica o conceito de "mundo da vida."
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- O Conceito Husserliano de "Mundo da Vida" como Problema Universal do Ser e da Verdade (§ 34)
- A transformação do conceito de "experiência" que fundamenta as ciências começa já no § 33.
- A experiência que o cientista pressupõe em seu exercício é o mundo no qual ele vê seus instrumentos, seus cronômetros, e no qual ele próprio está incluído com toda a sua atividade e todas as suas ideias teóricas (p. 138).
- A experiência fundadora não é mais uma intuição muda e pré-conceitual, mas sim a experiência do mundo atual, concreto, histórico, com suas realizações culturais, incluindo seus conceitos e ciências.
- O mundo da vida é simultaneamente o que fundamenta e o que contém o mundo científico: "O mundo científico e os entes nele contidos na verdade científica ’pertencem’ eles próprios, como é o caso para todos os mundos teleológicos, ao mundo da vida."
- Essa mudança resulta na transformação da própria problemática: o problema epistemológico da relação de fundamento entre o conceito científico e a intuição pré-conceitual é substituído pelo problema da relação entre o mundo abstrato objetivo e o mundo concreto da vida histórica, do qual a própria práxis científica faz parte, sendo "uma espécie entre outras de prestações práticas."
- A crise das ciências europeias é precisamente uma crise da relação entre as ciências objetivas e a vida histórica.
- Esta relação apresenta um paradoxo reconhecido por Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) , que admite que "há aqui […] o que nos pode confundir": por um lado, "cada mundo prático, cada ciência pressupõe o mundo da vida," e, como formação teleológica, contrasta com o mundo da vida, que "por si mesmo" já é e continua a ser. - O mundo particular dos nossos interesses se destaca no fundo do mundo da vida, que continua a ser para nós, mas permanece fora do tema, e por outro lado, "o que sai ou saiu da humanidade (individual ou coletivamente) é ele próprio um pedaço do mundo da vida."
- Essa dificuldade se resolve ao considerar que "fazer uso" do mundo da vida não é "tomá-lo por tema".
- Os cientistas, embora possam fazer uso desse mundo da vida (que é o "fundo" do trabalho teórico), não o têm como tema, nem como o que lhes é dado antecipadamente, nem como o que incorpora a posteriori seu trabalho.
- A transformação do conceito de experiência e da problemática epistemológica culmina na redefinição do conceito de "mundo da vida."
- Em contraste com o mundo objetivo da ciência, o mundo da vida é "o universum do ser que está constantemente para nós no movimento incessante da relatividade."
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- A Ontologia do Mundo da Vida
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) propõe que o mundo subjetivo e relativo da vida se torne o objeto de uma nova ciência, não mais para elucidar o fundamento das ciências objetivas, mas para desvendar o sentido do ser e da verdade do mundo em geral. - A questão é se não podemos, "mudando de atitude," tomar o mundo da vida universalmente como tema — mundo do qual todos temos consciência enquanto vivemos, mas sem o tematizar universalmente, dedicando-nos aos fins e interesses profissionais – e querer conhecê-lo tal como ele é e como ele é, em sua mobilidade e relatividade próprias, transformando-o no tema de uma ciência universal.
- Para proteger o problema do mundo da vida de qualquer interferência estranha, ou seja, para "não deixar aqui, onde está em questão o ser do mundo da vida, que se substitua a ele o ser no sentido da ciência objetiva," esta ciência inédita exige um primeiro passo metódico: a epochè em relação à ciência objetiva (§ 35).
- A epochè da ciência objetiva não significa abstração, "como se se imaginasse uma revolução fictícia na forma de pensar a existência humana atual, como se nela nada aparecesse que participe da ciência."
- Trata-se de realizar "uma epochè em relação a todos os interesses teóricos objetivos, ao conjunto das visadas e das atividades que nos são próprias na medida em que nos consideramos como cientistas objetivos ou mesmo simplesmente como pessoas curiosas por saber."
- Nessa epochè, as ciências e os cientistas não desaparecem, mas continuam a ser o que eram; a diferença é que deixamos de funcionar como pessoas que compartilham seus interesses e trabalhos.
- A epochè que atinge as ciências objetivas permite distinguir dois a priori: o universal objetivo-lógico e o universal do mundo da vida, e questionar como o segundo se fundamenta no primeiro, e se impõe imediatamente a nós como seu substituto.
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) forneceu algumas indicações sobre as estruturas formais mais gerais do a priori do mundo da vida (variações eidéticas no § 37), como a espaço-temporalidade, a inserção dos homens no mundo, e as práxis técnicas que surgem necessariamente dessa inserção em função das necessidades da vida prática, embora nunca tenha elaborado sistematicamente tal ontologia.
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- A Redução Transcendental (§§ 38 a 42)
- A tarefa que se abre no § 38 não é mais exclusivamente ontológica, passando-se da ontologia do mundo da vida para uma tarefa "muito maior e que, aliás, engloba a precedente."
- Cumpre-se assim o segundo passo metódico em direção à subjetividade transcendental.
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) observa que "este primeiro passo, que parecia no início nos privar de todas as ciências objetivas como terreno de validade, já não é de forma alguma suficiente," ou seja, a epochè das ciências objetivas do mundo não esgota o sentido da epochè transcendental, compreendida como alteração total da existência natural. - É possível permanecer na atitude natural mesmo ao tematizar o mundo da vida pré-científico, pois, entrando "diretamente no horizonte do mundo," o mundo em seus modos de aparecer subjetivos permanece não questionado, e a subjetividade transcendental ainda vive "por assim dizer perdidamente" no mundo.
- A primeira epochè atingia as ciências objetivas do mundo; a segunda atinge o tratamento objetivista do mundo pré-científico da intuição.
- O que era suspenso eram as ciências matemáticas da natureza; o que é suspenso agora são as ciências do espírito, principalmente a história.
- Os historiadores compartilham com os cientistas o pressuposto do mundo dado antecipadamente, sob a forma dos diversos mundos-ambientes-de-vida dos povos e épocas que estudam, o que se repete mesmo quando tentam alcançar uma história universal, transformando "em um tema todas as épocas e todos os povos e, por fim, a totalidade espaço-temporal do mundo, na unidade de uma circunspecção sistemática."
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) visa aqui o programa de uma crítica da razão histórica, como a desenvolvida por Dilthey Dilthey WILHELM DILTHEY (1833-1911) foi para H uma figura central, dos anos de formação até a publicação de Ser e Tempo onde o §77 é uma homenagem solene. , rebaixando a questão das relatividades históricas a um segundo plano. - O problema não reside na diversidade dos Lebensumwelten, de modo que uma história universal pudesse superar a unilateralidade dos pontos de vista particulares, livrando a inteligência histórica do risco relativista (como esperava Dilthey Dilthey WILHELM DILTHEY (1833-1911) foi para H uma figura central, dos anos de formação até a publicação de Ser e Tempo onde o §77 é uma homenagem solene. ).
- O que está em causa é o princípio mesmo da atitude natural, da qual os historiadores permanecem prisioneiros, e que nenhum alargamento de perspectiva pode modificar: o pressuposto de que o mundo existe e que seus diferentes aspectos poderiam ser descritos com base em uma simples constatação empírica.
- É preciso distinguir duas formas possíveis de tematizar o mundo da vida: a atitude direta (Geradehineinstellung) ingênua e natural, orientada para o ontológico objetivo (e não mais o cientificamente objetivo), e a atitude resolutamente reflexiva, orientada para o "como" dos múltiplos modos de doação subjetivos do mundo da vida (§ 38).
- A clarificação do a priori ontológico exige uma reflexão radical que ultrapasse a unilateralidade abstrata do conhecimento positivo-ontológico e considere o a priori ontológico em sua correlação com a subjetividade.
- Esta reflexão radical assume a forma de uma mudança de atitude: o olhar não é mais dirigido ingênua e unilateralmente, ou "diretamente," para o ontológico positivo (como princípio da positividade ou da objetividade), nem para o mundo (como conjunto da positividade ou da objetividade), mas sim para a vida da subjetividade na qual o positivo "se apresenta."
- Essa mudança de atitude não é uma perda, mas um ganho, um "alargamento," pois a positividade passa a ser vista em sua correlação com a subjetividade, ou seja, como o que se apresenta ou se constitui.
- O tema da segunda atitude, que se baseia em uma "orientação totalmente nova do interesse," inclui também o mundo da vida em sua estrutura ontológica, mas esta se encontra em correlação com a vida operatória universal, na qual o mundo chega a ser postulado.
- Esta subjetividade, na qual se constitui toda objetividade, é a subjetividade transcendental, que se desdobra como uma intersubjetividade comunitária pela objetividade comum, e como uma subjetividade temporal (histórica), porque a objetividade que nela se constitui tem uma história.
- Ao passar da ontologia do mundo da vida para a tarefa que a engloba de elucidação da subjetividade transcendental, chega-se à exigência, enunciada no § 42, de esboçar concretamente os caminhos para efetivar a redução transcendental: "como tornar agora concretamente compreensível a operação que até agora apenas anunciamos e que a epochè torna possível — chamamos a esta operação a ’redução transcendental’?"
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- A Constituição da Intersubjetividade (§§ 43-55)
- Adotar e manter essa nova atitude em sua pureza é difícil, devido à "anti-naturalidade" da conversão do olhar exigida.
- O filósofo é constantemente tentado a apreender a vida subjetiva positiva e ontologicamente, e a "realizá-la," tendendo a explicar a vida transcendental por leis objetivas científicas, mesmo quando sua tarefa é elucidar essas leis pelo retorno à vida subjetiva.
- No § 53, Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) aborda o paradoxo da subjetividade humana: "ser sujeito para o mundo, e ao mesmo tempo ser objeto no mundo." - Por um lado, através do método atual da epochè, "todo o objetivo se metamorfoseou em subjetivo," ou mais precisamente, em "um subjetivo particular," pois "o ’subjetivo’ também se relativiza," particularizando-se em um polo objetivo (o aparecente como correlato objetivo das visadas) e um polo egológico (constituído pelos modos de aparição).
- Na epochè, o mundo tem o modo de ser de uma unidade de sentido, e as visadas "subjetivas" são chamadas, em um sentido novo e mais elevado, de "o subjetivo do mundo."
- O conceito fenomenológico do subjetivo abrange, na epochè, os dois aspectos: o universum dos polos egológicos e, inseparavelmente, o universum dos polos objetivos, que são como o anverso e o verso de uma medalha.
- Por outro lado, o universum dos polos egológicos – a intersubjetividade universal na qual toda objetividade se resolve – só pode ser a subjetividade da humanidade, e a humanidade faz parte do mundo.
- O paradoxo é, portanto: "como uma parte integrante do mundo, a subjetividade humana que ele contém, pode constituir o mundo inteiro, entendo constituí-lo como a sua formação intencional?"
- A resolução deste paradoxo, no § 54, exige um aprofundamento da epochè.
- Na relativa ingenuidade do procedimento inicial, Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) se deteve em uma "correlação de primeiro grau," a do polo objetivo e de seus modos de aparecer, e embora o ego tenha sido mencionado, "nunca recebeu seu pleno direito." - O que faltava era o problema da constituição da intersubjetividade a partir de mim, e mesmo em mim.
- A ingenuidade que persistia era o "auto-esquecimento de nós mesmos que filosofamos," e este problema se impõe ao final da Krisis IIIA: serão os sujeitos transcendentais homens?
- A epochè deve transformar os sujeitos transcendentais em "fenômenos," de modo que quem filosofa na epochè não considera ingênua nem a si mesmo, nem aos outros, como homens, mas apenas como "fenômenos," como polos para questões transcendentais em retorno.
- Na epochè, todo ego é considerado apenas como o polo egológico de seus atos, como "substrato de seus habitus" (como já se dizia na quarta Meditação Cartesiana), pois todas essas realizações constituem para o ego suas habitualidades.
- Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) conclui que, na epochè e na consideração do polo egológico, "nada de humano eo ipso se mostra, nem alma nem vida da alma, nem homens reais psico-físicos," pois tudo isso pertence ao "fenômeno," ao mundo como polo constituído. - A redução transcendental é, então, compreendida como uma "desumanização," o que significa que deve evitar transpor para a subjetividade transcendental dados de fato constatados para o eu empírico.
- Expressões de Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) sobre nascimento e morte na esfera transcendental (mencionadas por Fink Fink
Eugen Fink EUGEN FINK (1905-1975) , seu assistente) levantam a questão se o ego transcendental nasce, vive ou morre, ou se sobrevive à morte do ego empírico. - A única questão pertinente seria como a subjetividade transcendental pode constituir esses eventos como experiências vividas pelo ego empírico.
- A falha da via pela ontologia do mundo da vida poderia residir na tentação de transpor para a subjetividade transcendental questões pertinentes apenas para o ego empírico constituído, o que pode levar a paralogismos, e Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) provavelmente não escapou inteiramente dessa tentação.
Ver online : Edmund Husserl
GÉRARD, Vincent. La “Krisis”, Husserl. Paris: Ellipses, 1999.