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Solomon (1990) – Rousseau descobre "seu eu"

segunda-feira 3 de novembro de 2025

Caminhando em solidão pelas florestas exuberantes de Saint-Germain durante a primeira adolescência da era moderna, Jean-Jacques Rousseau fez uma descoberta miraculosa. Descobriu o seu próprio eu. Esse eu não era, como pensara seu predecessor mais escolástico, Descartes Descartes H. consagrou dois cursos e quatro seminários a Descartes. A desconstrução da metafísica heideggeriana conduz um diálogo intenso com Descartes. , aquele eu tênue e meramente lógico, uma pura formalidade que se apresentava de modo indubitável sempre que ele refletia: “Penso, logo existo.” Tampouco se tratava da busca frustrada e cética que levou seu amigo Hume Hume
David Hume
DAVID HUME (1711-1776)
a declarar, paradoxalmente, que “sempre que olho para dentro de mim, não há nenhum eu a ser encontrado.” O que Rousseau descobriu nas florestas da França foi um eu tão rico e substancial, tão repleto de bons sentimentos e pensamentos meio articulados, tão expansivo, natural e em paz com o universo, que o reconheceu imediatamente como algo muito mais do que o seu eu singular. Era, antes, o Eu em si, a alma da humanidade. Ao olhar profundamente para dentro de si, Rousseau descobriu o eu que compartilhava com todos os homens e mulheres do mundo inteiro, e declarou que ele era bom — intrinsecamente bom, apesar de todos os artifícios e superficialidades do redemoinho social. Em Paris, nas proximidades, poderia ser difícil ver além da corrupção e da vã convencionalidade da sociedade moderna, mas ali, livre, sozinho e em paz com a própria natureza, era antes a inocência que se tornava evidente, uma bondade natural que sobrevivia aos pecados e humilhações da vida social, um verdadeiro e absoluto eu que não pertencia apenas a cada pessoa individualmente, mas que era partilhado por toda a humanidade.

O que Rousseau descobriu — ou, ao menos, elevou ao nível da filosofia de primeira grandeza — foi a pretensão transcendental. Ela se apresentava como inocência e bom senso, mas encarnava uma profunda arrogância que promovia a autocomplacência moral, impedia a compreensão mútua e desmentia a diversidade humana. Em sua forma plenamente desenvolvida, a pretensão transcendental possui dois componentes centrais: primeiro, a notável riqueza interior e a vastidão do eu, que, em última instância, tudo abarca; e, segundo, o consequente direito de projetar, a partir das estruturas subjetivas da própria mente, e determinar a natureza da humanidade como tal. É sugestivo que a pretensão transcendental tenha sido descoberta por um sociopata, livre e a sós com o próprio autoengrandecimento, mas alguém que inspirou uma das mais espetaculares e bem-sucedidas filosofias que o mundo já conheceu.

[SOLOMON, Robert C. Continental philosophy since 1750: the rise and fall of the self. Oxford: Oxford Univ. Pr, 1990]


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