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Cognition and work

Scheler (1926/2021) – Cognição e Trabalho

Erkenntnis und Arbeit

O pathos que o ser humano moderno vincula à palavra “trabalho” exerceu enorme influência sobre a visão filosófica da cognição e sobre o significado do ser humano. Sua intensidade tornou-se tanto maior quanto mais o ser humano moderno procura libertar-se das antigas tradições espirituais cristãs e busca criar para si uma visão de mundo e um ethos a partir de suas próprias condições de vida e de existência. Esse pathos encontra sua expressão mais precisa no Manifesto Comunista: o trabalho é o “único criador de toda educação e cultura”. A melhor evidência do aumento da intensidade desse pathos é o surgimento do “pensamento pragmático” na epistemologia, bem como na metafísica. É o ser humano “homo rationalis” e não apenas “homo faber”? Esta é a questão decisiva que cumpre ousar levantar.

  • O pathos que o ser humano moderno atribui à palavra "trabalho" exerceu uma influência tremenda na visão filosófica da cognição e no significado do ser humano.
    • A intensidade desse pathos cresceu à medida que o ser humano moderno tenta se desvincular das tradições espirituais antiga e cristã e busca criar uma visão de mundo e um ethos a partir das suas próprias condições de vida e existência.
    • Esse pathos encontra a sua expressão mais precisa no Manifesto Comunista: o trabalho é o "único criador de toda educação e cultura."
    • O melhor indício da intensidade crescente desse pathos é o surgimento do "pensamento pragmático" na epistemologia e na metafísica.
    • A questão decisiva a ser levantada é: o ser humano é "homo rationalis" e não meramente "homo faber"?
  • Mesmo para aqueles que não se importam com questões especulativas, o fato de que a produtividade da ciência positiva moderna (o seu progresso contínuo e o sucesso mundial da tecnologia em dominar a natureza) se baseia na íntima unificação da ciência com a forma técnico-mecânica da produção de bens é dado como certo a tal ponto que a relação sistemática e íntima entre trabalho e cognição na civilização moderna nunca é posta em questão.
    • Esse vínculo entre trabalho e cognição fundamenta as características definidoras da forma moderna ocidental da ciência experimental (guiada pela teoria matemática e distinta de outras formas como a chinesa, indiana, grega e medieval).
    • Fundamenta, em não menor grau, a distintividade do moderno capitalismo de consumo racional e do seu sistema econômico, que o distingue de todas as outras formas econômicas históricas.
  • O surgimento dessa unidade entre trabalho e cognição — que separa o mundo ocidental moderno do coletivo pré-mundo e do com-mundo, de todas as formas de "ciência" contemplativa ou teorias da sabedoria (às quais pertencem as ciências chinesa, indiana e grega), e de qualquer forma de economia que visa apenas satisfazer necessidades — permanece incrivelmente ambíguo.
    • A ambiguidade é notável na economia em que as experiências obtidas no trabalho são transmitidas sem serem sistematicamente buscadas e são relacionadas a áreas onde novas necessidades são despertadas (ex: telégrafo, telefone, indústria elétrica e tecnologia de comunicações moderna).
  • Para se ter um esboço do problema, deve-se colocar a questão antitética de "ou-ou":
    • A técnica moderna de trabalho e produção de bens é apenas um uso prático e subsequente do conhecimento sobre a natureza, a sua ordem e as suas conexões legais, que é, por si só, puramente teórico? ("Puramente teórico" refere-se tanto às operações do pensamento e da intuição e suas formas, quanto aos fins e motivos subjetivos do pesquisador).
    • Ou a consciente (ou inconsciente) pulsão e vontade de dominar a natureza é o primum movens, e, consequentemente, as experiências experimentais e técnicas produzidas pelos efeitos dessa vontade são as experiências primárias e líderes? Nesse caso, a nova ciência seria apenas uma formulação subsequente dessas experiências (uma logificação, unificação e sistematização das reações bem-sucedidas e malsucedidas que a natureza concede ao nosso acesso prático de trabalho).
  • Se a última descrição for o caso, seria necessário estabelecer como meta de discussão se as formas de pensamento e intuição com que a ciência moderna aborda o dado da natureza, se os métodos e os objetivos de cognição da ciência moderna teriam sido construídos pelo pressuposto pré-lógico e alógico desta "vontade de poder e domínio sobre a natureza" e pelo sucesso/fracasso dos seus efeitos, construídos no curso dessa adaptação prático-técnica à natureza.
  • A resposta afirmativa a essa questão não implica que o pesquisador individual tenha tido, em sua intenção e motivação, um objetivo diferente da chamada cognição "pura" da coisa, ou que ele tenha já algum sentido do possível valor prático do seu trabalho.
    • O uso banal da intenção subjetiva foi unanimemente contraditado por pesquisadores e matemáticos (desde a crítica brilhante de Liebig ao método indutivo de Bacon), não valendo a pena ser revisto.
    • No entanto, um utilitarismo mais sofisticado e indireto é capaz de dar um rumo diferente a essa banalidade, um rumo já indicado por Liebig.
  • Nesse rumo mais sofisticado, qualquer cognição de leis naturais, utilizada tecnicamente de forma mais frutuosa, não é buscada e encontrada por causa dessa utilização, mas é obtida exclusivamente a partir da própria lógica do método em intenção teórica pura.
    • Liebig encontrou cognições na química orgânica que se provaram frutíferas para a tecnologia de fertilização agrícola, sem buscá-lo.
    • Weber (físico) e Gauss (matemático) instalaram um fio em Gotinga para entender o tempo sideral exato por meio de ondas elétricas, sem pensarem que tinham descoberto os princípios fundamentais do telégrafo.
    • Henri Poincaré disse: "Nós não estudamos os céus estrelados e as suas leis para descobrir novas leis segundo as quais poderíamos construir novas máquinas, mas antes fazemos sempre novas máquinas que libertarão mais humanos do fardo do trabalho físico para que possam pesquisar os céus também," embora a sua teoria nominalista da matemática e da ciência natural contenha elementos pragmáticos.
  • Mesmo que o pragmatismo mais sofisticado esteja correto ao rejeitar a banalidade da intenção subjetiva, a questão principal sobre a determinação das formas de pensamento não está resolvida.
    • H. Spencer ensina em sua ética que a máxima felicidade construiria o critério objetivo de "bom" e "mau," mas só seria obtida se ninguém a tomasse como objetivo subjetivo e motivo. A maior felicidade seria obtida ao seguir as leis da justiça (inatas e reveladas), que são expressões das experiências acumuladas da espécie humana (sucesso, fracasso, prazer e desprazer), conduzindo ao objetivo da felicidade máxima mais eficazmente do que a experiência individual.
    • A verdade da teoria de Spencer não é o foco, mas a analogia: sentimentos de felicidade mais profundos só são obtidos quando não são buscados deliberadamente. Poderia o maior uso prático objetivo do conhecimento ser garantido precisamente por não se buscar esse uso, mas sim o conhecimento como tal como valor próprio?
    • A questão se as formas de pensamento e intuição, os métodos e objetivos da maneira moderna de pesquisa são ou não determinados pela "vontade" de dominar a natureza é de uma ordem totalmente diferente e nunca pode ser apreendida através da "psicologia do pesquisador."
  • A intenção do autor é fornecer apenas considerações teóricas fundamentais que revelem novos caminhos para a solução desta questão, que tem sido mal formulada.
    • A argumentação final para essas considerações está em uma publicação dedicada aos problemas fundamentais da epistemologia.
  • Para um procedimento sistemático, o problema do trabalho e da cognição deve ser investigado de cinco maneiras na visão de mundo moderna:
      1. Histórica e Sociológica: Mostrar a cooperação detalhada de tecnologia e ciência na história (o que comandava, como o caráter coletivo das ciências se formou segundo novos objetivos técnicos, e o efeito da ciência na tecnologia).
      1. Epistemológica: O problema como um problema epistemológico (já abordado pelo pragmatismo: James a Nietzsche Nietzsche
        Friedrich Nietzsche
        FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE (1844-1900)
        , Bergson Bergson H. leu e trabalhou Bergson com paixão no início dos anos 1920, como declarou em carta a sua esposa. (LDMH) a Vaihinger).
      1. Fisiológica e Psicológica do Desenvolvimento: O problema em relação ao curso do desenvolvimento de seres vivos, capacidades psíquicas, processo de maturação e desenvolvimento do conhecimento do ser humano histórico.
      1. Fisiologia do Trabalho e Psicologia do Processo de Trabalho: O problema tratado pela fisiologia do trabalho (o inter-jogo dos processos sensoriais e motores dos atos de trabalho) e pela psicologia do processo de trabalho (Kraepelin, sintomas de deficiência psicopática).
      1. Pedagógica (Aplicada): O problema na pedagogia, com a ideia da "escola do trabalho" (Dewey, Kerschensteiner) em contraste com a "escola da erudição" (ex: definir peso específico verbalmente versus demonstrar e praticar a determinação do peso específico).
  • O autor examinará o problema da cognição e trabalho a partir dos segundo e terceiro pontos de vista nesta exposição.
    • O primeiro ponto de vista (histórico e sociológico) já foi minuciosamente tratado em sua obra anterior, Problemas de uma Sociologia do Conhecimento. A investigação atual complementa e aprofunda essa obra sob a ótica epistemológica e da psicologia do desenvolvimento.

Ponto de Vista Histórico e Sociológico (Desenvolvido)

  • As pesquisas de Pierre Duhem (história da mecânica, termodinâmica e teoria da energia) e Ernst Mach mostram que as tarefas técnicas abrangentes deram o impulso por trás de vários aspectos da matemática e ciência natural, e que a logificação e sistematização dos resultados foram geralmente subsequentes.
    • O experimento, como meio de pesquisa, cresceu lentamente a partir do aumento do nivelamento dos propósitos específicos (em parte técnicos, em parte intervenções lúdicas na natureza).
    • O sistema de tipos de "indução experimental" (J. S. Mill) não cresceu de uma pura vontade de cognição, mas foi o resultado de intervenções técnicas que não apenas tornam a observação possível, mas também produzem o que era desejado.
    • Geneticamente, o experimento é apenas um caso limite de uma intervenção técnica (o objetivo específico original é esquecido e os objetivos específicos se nivelam a objetivos gerais e abrangentes).
  • Quando não há a capacidade de realizar o experimento na realidade, ele se torna um "experimento de pensamento."
    • O objetivo aqui não é saber como o objeto veio a ser em si mesmo, mas como o objeto pode ser imaginado para que pudesse ser feito (se houvesse material e força) a partir das partes existentes e sinais inequívocos.
    • Newton realizou um experimento de pensamento ao imaginar a Lua como uma pedra lançada de um pico de montanha com força suficiente para entrar em movimento circular ao redor da Terra.
  • No deísmo dos séculos XVII e XVIII, o próprio Deus se torna apenas um "engenheiro mundial" infinito que fabricou a máquina do mundo de forma que ela possa funcionar de maneira ideal sem direção divina.
  • A nova ideia de poder (expressa simultaneamente na teologia de Calvino, na teoria da soberania de Bodin, e na política de Hobbes e Maquiavel) seleciona novamente os objetos de cognição e determina novamente os seus objetivos (a explicação mecanicista da natureza).
    • Francis Bacon só quer "ver para prever" e "prever" (sem interesse, por exemplo, nas estrelas fixas), porque isso encoraja o "poder" humano sobre a natureza.
    • G. B. Vico declara no século XVIII que só se pode conhecer algo na medida em que se é capaz de produzir o objeto por si mesmo.
  • A teoria da cognição é capaz de mostrar de forma convincente que a pura vontade de cognição (lógica, matemática e intuição) nunca levaria a uma explicação mecanicista (material ou formal) dos fenômenos da natureza ou da alma (como acreditavam Kant Kant Emmanuel Kant (Immanuel en allemand), 1724-1804, é um dos autores de predileção de H., um daqueles do qual mais falou. e Driesch).
  • Esse tipo de pensamento funcionalizou-se através de experiências para se tornar o mais alto valor do conhecimento, e foi separado de todos os outros tipos possíveis de experiência como a única possível.
    • Uma direção de interesse e portadora de valor (e suas regras de preferência) precedem em geral toda percepção e intuição do mundo, bem como todo pensamento (apreensão de sentido e fatos).
    • O chamado "mecanismo" se torna o esquema antecipatório no qual a nova sociedade burguesa captura a imagem da coisa.
  • É certo que: na medida em que qualquer ser vivo pode guiar a natureza e a alma para algum objetivo particular por movimento espontâneo, a sua aparência e ser devem estar enraizados no "movimento" de coisas primárias transportáveis (massas, elétrons, etc.).
    • Na medida em que o mundo não é um mecanismo, o mundo não é guiável e controlável.
  • Não foi nem o "entendimento puro" nem o "espírito puro" que esboçaram, no início da modernidade, o imenso programa de uma explicação mecanicista abrangente da natureza e da alma (física, química, biologia, psicologia, sociologia, etc.).
    • Foi a nova vontade de poder e trabalho de uma sociedade ascendente (visando a natureza) que começou gradualmente a suprimir a valorização dominante durante o feudalismo (domínio de seres humanos sobre seres humanos e o mundo orgânico) e a vontade cognitiva contemplativa da sociedade clerical/monástica (que buscava espelhar espiritualmente a essência e forma do mundo).
  • Qualquer "tipo de pensamento" ou esquema antecipatório (no qual as visões de mundo e formas de ciência apresentam o ser-assim do mundo) tem origem através da "funcionalização" (funcionalização de um detalhe particular de intuições e insights essenciais).
    • Um relativismo e historicismo (no sentido de O. Spengler Spengler OSWALD ARNOLD GOTTFRIED SPENGLER (1880-1936) ) não decorrem disto. Se em algum nível existencialmente relativo aos seus objetos o mundo não tem onticamente um lado formal, mecanicista, nenhum juízo subjetivo decisivo (poder), nenhuma vontade de poder poderia decifrar tal lado da experiência mundial.
    • Apenas as escolhas prevalecentes e específicas de formas de pensamento são sociológica e historicamente determinadas, não as formas como tais.
    • Qualquer um desses esquemas é ainda dirigido por uma forma de ethos, por um sistema vivo de valorização (privilégio de valor) e pré-amar.
    • Qualquer um desses sistemas de valor persiste através de uma classe social dominante e exemplar. Nada pode exemplificar melhor essas leis do que a origem social-histórica da visão de mundo moderna.

Epistemologia e Psicologia do Desenvolvimento

  • A tese pragmática, em todas as suas expressões, subscreve a "proposição" de que todo conhecimento é geneticamente apenas o resultado de uma espécie de ação interior e uma preparação para uma remodelação do mundo.
    • O conhecimento deve servir a ação teleológica e valor-teoricamente.
  • A teoria da percepção recebe mais atenção do que a teoria pragmática do pensamento por dois motivos:
      1. Princípios e erros fundamentais da teoria pragmática do pensamento foram refutados por Investigações Lógicas de E. Husserl Husserl
        Edmund Husserl
        EDMUND HUSSERL (1859-1938)
        (embora a refutação ainda careça de determinação dos limites dos motivos pragmáticos no pensamento científico).
      1. O autor não deseja repetir a sua análise abrangente das diferentes formas de pensamento que a "pura lógica" aceita (lógica da filosofia e lógica da ciência), que será abordada em seu primeiro volume ainda não publicado da sua metafísica.
  • O problema é também fisiológico e psicológico do desenvolvimento em múltiplos sentidos:
    • Curso de desenvolvimento de seres vivos.
    • Capacidades de realização psíquica de diferentes animais em relação aos humanos.
    • Processo de maturação (criança a adulto).
    • Desenvolvimento do conhecimento do ser humano histórico.
    • A questão é se e em que medida existem associações condicionais entre o impulso e o comportamento motor do organismo e a construção da sua visão do ambiente (e similarmente entre trabalho regulado e formas de conhecimento) que levam à educação dos órgãos e funções (fisiológicas e psíquicas) necessárias para a expansão da visão de mundo.

Ver online : Max Scheler


SCHELER, Max. Cognition and work: a study concerning the value and limits of the pragmatic motifs in the cognition of the world. Tr. Zachary Davis. Evanston (Ill.): Northwestern university press, 2021.