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L’événement et le monde
Romano (1999:63-69) – Impossibildade de datação do evento
Caráter "inexperienciável" do evento
As Diferenças Fenomenológicas entre o Fato Intramundano e o Evento no Sentido Eventual
- Diferença 1: O Substrato de Atribuição Ôntica
- O fato intramundano que aparece desprovido de todo substrato de atribuição ôntica unívoca.
- O evento que é sempre suscetível de uma atribuição determinada, sobrevivendo a mim mesmo, a ti mesmo, e nunca chegando sem mais.
- Diferença 2: O Horizonte do Mundo e a Reconfiguração do Contexto
- O fato intramundano, desprovido de todo substrato de atribuição ôntica unívoca, que se mostra sempre necessariamente no interior de um contexto que lhe confere seu sentido, ou seja, sob o horizonte de um mundo.
- O evento no sentido eventual que, ao contrário, esclarece seu próprio contexto e não se reduz a ele.
- O evento que significa rigorosamente, para aquele que o experimenta, o advento de um novo mundo.
- A mudança no próprio sentido do "mundo" entre as duas afirmações:
- Na primeira acepção, o mundo (em sua acepção eventual) significa o contexto significante de cada fato, em cujo horizonte ele toma sentido e à luz do qual ele se explica.
- Na segunda acepção, o mundo significa o que advém em todo evento, a totalidade das possibilidades articuladas entre si do adventício, que o evento reconfigura em seu surgimento an-árquico.
- O mundo no sentido eventual que é o horizonte de sentido que o evento mesmo abriu para a aventura humana, na medida em que só se advém sob seu próprio horizonte.
- Diferença 3: A Efetuação e a Origem
- O fato que se contenta em efetuar possíveis prévios, já prefigurados no horizonte do mundo, e que é suscetível, a este título, de uma explicação causal.
- O evento que aparece irredutível ao seu contexto, transcendendo sua própria efetuação como fato.
- O evento que se absolve de toda causalidade antecedente e se anuncia, desligado de todo condicionamento, como sua própria origem.
- O evento inacessível a toda explicação, que só se abre a uma compreensão que lhe capta o sentido.
- O sentido que só é compreensível a partir do horizonte que o evento mesmo abriu.
- O sentido acessível apenas a partir de sua posteridade, segundo um "retardo" estrutural.
A Quarta Diferença Fenomenológica: A Não Databilidade do Evento e sua Temporalização
- Diferença 4: O Presente Datável vs. Abertura do Tempo
- O fato que se produz em um presente datável, presente definitivo onde tudo está cumprido, precisamente como "fato cumprido".
- O evento que não é datável, não se inscreve tanto no tempo quanto abre o tempo, ou o temporaliza.
- O caráter inexperimentável do evento, à luz do conceito empirista de "experiência".
- O Excesso do Evento em Relação ao Presente
- O evento que essencialmente extravasa o presente de sua efetuação, nunca se cumprindo no presente nem se apresentando sob um horizonte temporal.
- O evento que abre um futuro inteiramente novo e é dado por inteiro no movimento desta futuração.
- A futuração pela qual advêm possíveis que, em relação ao presente e ao passado, pareciam rigorosamente impossíveis.
- O evento que introduz uma falha entre passado e futuro, de onde o tempo mesmo surge na diacronia de seus tempos radicalmente rompidos e não sincronizáveis.
- O caráter excessivo do evento em relação ao presente onde se produz como fato, onde o fato se cumpre e se aperfeiçoa ao se efetuar.
- A suspensão e a saliência temporais que se devem à carga de possibilidades que o evento porta e traz consigo.
- A carga que faz com que o evento transtorne o mundo, o presente e o adventício.
- A citação de Proust em La prisonnière (A prisioneira): "Parece que os eventos sejam mais vastos que o momento onde têm lugar e não podem caber inteiros nele".
- A Impossibilidade da Datação Estrita do Evento
- A questão sobre o momento em que o evento se produziu que não interroga o evento em sua efetuação fática, mas o evento em sua eventualidade como reconfiguração impessoal do mundo.
- O exemplo do encontro que não se reduz à efetiva apresentação intramundana de dois adventícios dados.
- A dimensão de surpresa, de ek-stase e de rapto que se introduz com o encontro "no mundo", indissociável de um transtorno deste mundo.
- A ansiedade, febrilidade e timidez como fenômenos essenciais de todo encontro.
- O encontro que rompe toda familiaridade com o mundo e suspende toda "base", toda segurança, expondo ao risco de uma alteridade radical que se furta a todo domínio e a toda previsão.
- O Transtorno do Mundo pelo Evento-Encontro
- O encontro que, como evento, não se inscreve em um mundo prévio, em meu mundo, neste "Welt" (mundo) a cada vez meu (je meines) que Heidegger afirma ser um constituinte ontológico do Dasein.
- O encontro que introduz no mundo sempre "meu" a estranheza de um mundo "outro" (incomparavelmente), o mundo do outro.
- O evento que transforma o mundo do adventício de ponta a ponta.
- O evento que providencia o acesso ao mundo do outro, ao qual não se poderia aceder por si mesmo.
- O evento que permite "ver" o próprio mundo e a si mesmo a partir do mundo do outro.
- O encontro que significa, para o adventício, uma metamorfose do mundo ao romper o mundo solitário e introduzir possíveis que nele não se prefiguravam.
- A citação de Kafka em uma carta a Milena: "O que me acontece (was geschieht) é algo formidável (Ungeheuerliches; literalmente: de imenso, de assustador), meu mundo se desmorona e meu mundo se edifica (meine Welt stürtz ein, meine Welt baut sich auf)… De sua queda, eu não me queixo, ele estava se desmoronando, eu me queixo de sua edificação, eu me queixo de minhas fracas forças, é de nascer que eu me queixo, é da luz do sol."
- A Latência e o Pós-Tempo Essencial do Evento
- A metamorfose do mundo que é impossível de datar, diferente do fato da apresentação efetiva.
- A metamorfose que só aparece para aquele que a experimenta quando já teve lugar.
- O primeiro momento, o começo de um amor ou de uma amizade que estão sempre já "perdidos".
- O evento que, quando "se produziu", já é tarde demais.
- O nunca ser contemporâneos de sua efetuação, só se podendo fazer a prova quando ela já ocorreu.
- O evento em sua eventualidade que só advém segundo o segredo de sua latência.
- O encontro que não é o fato datável da apresentação de dois seres, mas o que está em reserva nesta apresentação, dando-lhe sua carga de futuro.
- O transtorno silencioso que se introduz, a partir do outro, no mundo próprio.
- O transtorno que reconfigura as possibilidades a partir do exterior, antes de todo projeto de um poder-ser autônomo.
- A Eventualidade da Decisão e a Impossibilidade de Datação
- A extrema "passividade" da encontro, onde o outro vem em uma abordagem de sua única iniciativa.
- O que vale para a passividade do encontro (onde o outro "me atinge de impotência", segundo Levinas
Levinas
Lévinas
Emmanuel Levinas Emmanuel Levinas (1906-1995), philosophe d’origine lituanienne, naturalisé français en 1930. ), vale para a decisão, manifestação de poder, liberdade e autonomia. - As grandes decisões que se inscrevem como verdadeiros eventos e que se produzem em nós de modo que nunca somos contemporâneos de sua origem.
- A distinção de Sartre
Sartre
Jean-Paul Sartre JEAN-PAUL SARTRE (1905-1980)
Excertos, por termos relevantes, de sua obra original em francês : não porque já teríamos decidido (hipostasiando a liberdade humana e tornando a deliberação uma "comédia"). - A decisão verdadeira que se anuncia há muito tempo, antes mesmo de se enunciar.
- A descrição de Claude Simon em L’herbe (A erva) sobre a impossibilidade de datar uma decisão, pertencente à sua eventualidade: "… Mas ela não responde e, ao fim de um momento, ele aparece: ela poderá vê-lo mais tarde assim, e ela se perguntará então se não foi neste momento que ela tomou sua decisão, embora, pensará ela com ironia, seja aproximadamente tão inteligente procurar saber o momento em que se tomou uma decisão e as razões desta decisão quanto aquele (e aquelas) em que (e que fazem com que) se pegou um resfriado, sendo a única certeza que se pode ter a respeito de uma ou de outra (a decisão ou o resfriado) quando uma ou outra se declaram e neste momento ela ou ele estão há muito instalados."
- O Já-Havia e a Falha Temporal do Evento
- O evento que reconfigura anonimamente os possíveis.
- A ocorrência do evento que já teve lugar "há muito tempo" quando ele se cumpre como decisão efetiva, no presente datável de sua efetuação, quando a decisão intervém ou "se declara".
- O "já" que não deve ser entendido segundo uma sucessão temporal linear.
- A falha que o evento mesmo cavou entre um passado e um futuro irremediavelmente cindidos.
- O modo impessoal de onde o tempo mesmo surge em sua abertura sem medida.
- O evento que já havia tido lugar há muito tempo quando a decisão é tomada.
- A efetuação do evento que é barulhenta e visível, e sua sobrevinda, seu advento, que é silenciosa e invisível.
- O exergo de Pasternak no romance de Claude Simon resumindo o hiato insondável: "Ninguém faz a história, não a vemos, assim como não se vê a erva crescer".
- O Pós-Tempo Estrutural e a Inexperiência Empírica
- A razão para a não-visibilidade: o evento, reconfiguração anônima do mundo, que sempre advém à margem de sua efetuação.
- A sobrevida que ocorre silenciosa e imperceptivelmente, "levada sobre patas de pomba".
- O evento que só se declara bem mais tarde, quando está há muito instalado.
- O evento que, quando se torna visível em sua efetuação, já adveio.
- A citação de Nietzsche
Nietzsche
Friedrich Nietzsche FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE (1844-1900) : "Os maiores eventos e os maiores pensamentos […] se fazem compreender o mais tarde; as gerações contemporâneas desses eventos não os vivem, mas passam ao lado". - O retardo que não é contingente ou acidental, mas necessário.
- A impossibilidade de ser contemporâneo do evento, de vivê-lo ou experimentá-lo.
- O sentido do evento que só se dá segundo um a posteriori essencial (um a posteriori "transcendental").
- A prova do evento, como reconfiguração impessoal do mundo, que escapa a toda "empiria" e a todo empirismo no sentido tradicional.
- A Defasagem Íntima como a Essência do Evento
- O atraso, a latência, o sobrestamento temporal que não são caracteres "adicionados" ao evento a partir do exterior.
- O evento que, em tanto que tal, não é outra coisa senão este sobrestamento imperceptível e esta silenciosa latência.
- O evento que é a defasagem íntima segundo o qual o inexperienciável pode tocar, ferir, e, ao se destinar, intimar sua prova, dando a possibilidade de acolhê-lo ao transformar.
Ver online : Claude Romano
ROMANO, Claude. L’événement et le monde. Paris: PUF, 1998