Página inicial > Fenomenologia > Ricoeur (1990:369-380) – o corpo próprio ou a carne
Soi-même comme un autre
Ricoeur (1990:369-380) – o corpo próprio ou a carne
Vers quelle ontologie?
-
A facilidade com que a fenomenologia remete para a ontologia é mais evidente quando consideramos a primeira figura da passividade-alteridade, nomeadamente o fenômeno enigmático do corpo próprio, que surgiu em três ocasiões anteriores nos nossos estudos.
- A análise de Strawson da pessoa como um particular básico levantou a questão de como predicados psíquicos e físicos díspares podem ser atribuídos a uma única e mesma entidade, se o corpo humano não for, ao mesmo tempo, um dos corpos e o meu corpo, uma constatação que nos levou a considerar a afirmação de que as pessoas são também corpos como uma restrição da linguagem, pressupondo que cada pessoa é, para si mesma, o seu próprio corpo, exigindo que a organização da linguagem se funde na constituição ontológica das pessoas.
- A discussão com Davidson impôs a dupla pertença do corpo próprio ao reino das coisas e ao do si, ao questionar como a ação pode, simultaneamente, constituir um evento do mundo e designar autorreferencialmente o seu autor, se este não pertencer ao mundo de um modo em que o si é constitutivo do próprio sentido dessa pertença, sendo o corpo próprio o lugar dessa pertença que permite ao si marcar os eventos que são as ações.
- A questão da identidade pessoal, levada ao extremo por Parfit, reintroduziu a problemática do corpo próprio ao ligar os critérios corporais e psíquicos de identidade – continuidade do desenvolvimento, permanência do caráter, dos habitus, dos papéis e das identificações – à manutenção de um si que encontra a sua âncora no corpo próprio.
-
A fenomenologia da passividade só ultrapassa o estádio implícito quando, neste fenômeno global de ancoragem, se salienta um traço marcante que as análises anteriores não consideraram suficientemente: o sofrimento, onde o subir, o pâtir, se revela na sua dimensão passiva integral quando se torna um sofrer.
- Embora se tenha falado constantemente do homem que age e sofre, e se tenha apontado para a correlação originária entre agir e sofrer – por exemplo, na identidade narrativa, onde a virtude do relato conjunta agentes e pacientes no entrelaçar de múltiplas histórias de vida –, é necessário ir mais longe e considerar formas mais dissimuladas de sofrer: a incapacidade de narrar, a recusa de narrar, a insistência do inenarrável, fenômenos que vão muito além da peripécia recuperável pelo sentido através da estratégia da intriga.
- Da mesma forma, a discussão sobre o lugar da Regra de Ouro na ética revelou a dissimetria fundamental inerente à interação, resultante de um agente exercer poder-sobre outro, tratando-o como paciente da sua ação, mas é preciso ir mais longe, até às formas de desestima de si e de detestação do outro, onde o sofrimento excede a dor física.
- Com a diminuição do poder de agir, sentida como uma diminuição do esforço para existir, começa o reino propriamente dito do sofrimento, cuja parte mais importante do mal no mundo resulta da violência exercida entre os homens, onde a passividade do corpo próprio se cruza com a passividade do outro, tornando-se a passividade de sofrer si mesmo indiscernível da passividade de ser-vítima do outro, aparecendo a vitimização como o avesso da passividade que enluta a "glória" da ação.
-
Para articular especulativamente a modalidade de alteridade correspondente a esta passividade, é necessário conceder à meta-categoria do corpo próprio uma amplitude comparável à que o sofrer confere ao subir, onde, numa dialética aguda entre praxis e pathos, o corpo próprio se torna o título emblemático de uma vasta investigação que, para além da mera propriedade (mienneté) do corpo próprio, designa toda a esfera da passividade íntima, e portanto da alteridade, da qual ele constitui o centro de gravidade.
- Esta perspectiva exigiria percorrer o trabalho conceptual desde os Tratados clássicos das paixões, passando por Maine de Biran
Maine de Biran
FRANÇOIS-PIERRE-GONTIER DE BIRAN (1766 – 1824)
, até à meditação de Gabriel Marcel
Gabriel Marcel
GABRIEL MARCEL (1889-1973)
, Merleau-Ponty
Merleau-Ponty
Maurice Merleau-Ponty MAURICE MERLEAU-PONTY (1908-1961)
Extratos por termos relevantes e Michel Henry Michel Henry
MHEM MICHEL HENRY (1922-2002) sobre a incarnação, a carne, a afetividade e a auto-afeção, limitando-nos aqui a colocar alguns marcos.
- Esta perspectiva exigiria percorrer o trabalho conceptual desde os Tratados clássicos das paixões, passando por Maine de Biran
Maine de Biran
FRANÇOIS-PIERRE-GONTIER DE BIRAN (1766 – 1824)
, até à meditação de Gabriel Marcel
Gabriel Marcel
GABRIEL MARCEL (1889-1973)
, Merleau-Ponty
Merleau-Ponty
-
Maine de Biran Maine de Biran FRANÇOIS-PIERRE-GONTIER DE BIRAN (1766 – 1824) é a figura fundadora que abriu este campo de investigação do corpo próprio, dando uma dimensão ontológica apropriada à sua descoberta fenomenológica ao dissociar a noção de existência da de substância e ligando-a à de ato, onde dizer "eu sou" é dizer "eu quero, eu movo, eu faço".
- A apercepção, distinta de toda a representação objetivante, engloba na mesma certeza o eu agente e o seu contrário, que é também o seu complemento, a passividade corporal, sendo Maine de Biran Maine de Biran FRANÇOIS-PIERRE-GONTIER DE BIRAN (1766 – 1824) o primeiro filósofo a introduzir o corpo próprio na região da certeza não representativa.
- Esta inclusão do corpo próprio apresenta graus crescentes de passividade: no primeiro grau, o corpo designa a resistência que cede ao esforço, exemplo paradigmático onde a estrutura relacional do eu está inteiramente contida, esforço e resistência formando uma unidade indivisível, e onde o corpo recebe a significação indelével de ser meu corpo com a sua diversidade íntima, a sua extensão irredutível, a sua massa e gravidade – a experiência princeps do "corpo ativo".
- Um segundo grau de passividade é representado pelas idas e vindas dos humores caprichosos – impressões de bem-estar ou mal-estar –, onde a passividade se torna estranha e adversa.
- Um terceiro grau de passividade é marcado pela resistência das coisas exteriores, onde, pelo tato ativo, as coisas atestam a sua existência tão indubitável como a nossa, existindo sendo resistir, revelando-se o corpo próprio como o mediador entre a intimidade do eu e a exterioridade do mundo.
-
O segundo marco, e o mais importante, no caminho que conduz da filosofia do esforço de Maine de Biran Maine de Biran FRANÇOIS-PIERRE-GONTIER DE BIRAN (1766 – 1824) às três grandes filosofias do corpo próprio, encontra-se incontestavelmente na fenomenologia de Husserl Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) , cuja contribuição para uma ontologia da carne é, num certo sentido, mais importante que a de Heidegger.- Esta afirmação é paradoxal, pois a distinção decisiva entre ((Leib)) (carne) e ((Körper)) (corpo), elaborada nas Meditações Cartesianas como uma etapa estratégica para a constituição de uma natureza comum intersubjetivamente fundada, permanece, na sua visão fundamental, dentro da problemática da constituição de toda a realidade na e pela consciência, da qual nos despedimos no prefácio desta obra.
- Poder-se-ia pensar que a filosofia do ser-no-mundo de Ser e Tempo
GA2
Sein und Zeit
SZ
SuZ
S.u.Z.
Être et temps
Ser e Tempo
Being and Time
Ser y Tiempo
EtreTemps
STMS
STFC
BTMR
STJR
BTJS
ETFV
STJG
ETJA
ETEM Sein und Zeit (1927), ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, 1977, XIV, 586p. Revised 2018. [GA2] / Sein und Zeit (1927), Tübingen, Max Niemeyer, 1967. / Sein und Zeit. Tübingen : Max Niemeyer Verlag, 1972 ofereceria um quadro mais apropriado, mas, paradoxalmente, é em Husserl Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) que se encontra o esboço mais promissor de uma ontologia da carne que marcaria a inscrição da fenomenologia hermenêutica numa ontologia da alteridade.
-
A polaridade carne/corpo deve a radicalidade da sua diferença precisamente à sua posição estratégica na argumentação das Meditações Cartesianas, onde nos encontramos numa egologia decidida, e não numa filosofia do si, sendo precisamente as dificuldades de tal egologia que conferem toda a urgência à distinção.
- O tema impõe-se ao nível da percepção, e não primariamente em ligação com um "eu posso" ou "eu movo", embora esta dimensão não esteja ausente, permanecendo na linha do leibhaft selbst (o dado ele mesmo em carne) dos escritos anteriores.
- O que deve reter a nossa atenção é a necessidade de distinguir entre carne e corpo para se poder proceder à derivação de um gênero único do alter ego a partir do ego, interessando-nos aqui a produção mesma desta distinção neste momento crucial da empresa de constituição da natureza objetiva com base na intersubjetividade.
-
A grande descoberta de Husserl Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) , sancionada pela distinção entre carne e corpo, pode ser dissociada do seu papel estratégico na fenomenologia transcendental, como sugerem as investigações nos Inéditos sobre a diferença entre carne e corpo, relativamente independentes da problemática da constituição intersubjetiva.- O que é dito sobre a distinção entre o aqui e o lá, enquanto irredutíveis a qualquer localização objetiva, pertence por excelência a esta ontologia fenomenológica da carne, afirmando-se que a carne é aqui absolutamente, heterogênea a todo o sistema de coordenadas geométricas, e portanto em parte alguma em termos de espacialidade objetiva.
- As notas sobre o contato como forma primordial do sentir reavivam a problemática biraniana da existência-resistência e convidam a deslocar o acento para o polo mundo da espacialidade da carne, sendo sobre este rapport pré-linguístico entre a minha carne localizada por si e um mundo acessível ou não ao "eu posso" que deve edificar-se uma semântica da ação.
-
Só quando a ontologia da carne se liberta tanto quanto possível da problemática da constituição que paradoxalmente a exigiu, se pode enfrentar o paradoxo inverso ao da teoria strawsoniana dos particulares de base: não o que significa que um corpo seja meu corpo (carne), mas que a carne seja também um corpo entre os corpos.
- Aqui, a fenomenologia atinge o seu limite, pois é preciso "mundanizar" a carne para que ela apareça como corpo entre os corpos, tal como se inventa o calendário para correlacionar o agora vivido com um instante qualquer, ou a carta geográfica para correlacionar o aqui carnal com um lugar qualquer.
- A alteridade do outro enquanto estrangeiro parece dever ser entrelaçada com a alteridade da carne que eu sou, e até considerada como prévia à redução ao próprio, pois a minha carne aparece como um corpo entre os corpos na medida em que eu sou, eu mesmo, um outro entre todos os outros, numa apreensão da natureza comum tecida na rede da intersubjetividade, que, ao contrário do que Husserl
Husserl
Edmund Husserl EDMUND HUSSERL (1859-1938) concebia, instaura à sua maneira a ipseidade.
-
Apesar do quadro geral de Ser e Tempo GA2
Sein und Zeit
SZ
SuZ
S.u.Z.
Être et temps
Ser e Tempo
Being and Time
Ser y Tiempo
EtreTemps
STMS
STFC
BTMR
STJR
BTJS
ETFV
STJG
ETJA
ETEM Sein und Zeit (1927), ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, 1977, XIV, 586p. Revised 2018. [GA2] / Sein und Zeit (1927), Tübingen, Max Niemeyer, 1967. / Sein und Zeit. Tübingen : Max Niemeyer Verlag, 1972 parecer mais apropriado para uma ontologia da carne, ao substituir a estrutura englobante do ser-no-mundo pelo problema da constituição de um mundo na e pela consciência, Heidegger não elaborou a noção de carne como um existencial distinto.- Várias razões explicam este silêncio: o acento colocado na angústia do ser-para-a-morte em detrimento de uma fenomenologia do sofrer; o tratamento da espacialidade do ((Dasein)) como dependente das formas inautênticas do cuidado (((Sorge))), que nos inclina a interpretarmo-nos a nós próprios em função dos objetos da nossa preocupação; e o triunfo da problemática da temporalidade na segunda seção de Ser e Tempo
GA2
Sein und Zeit
SZ
SuZ
S.u.Z.
Être et temps
Ser e Tempo
Being and Time
Ser y Tiempo
EtreTemps
STMS
STFC
BTMR
STJR
BTJS
ETFV
STJG
ETJA
ETEM Sein und Zeit (1927), ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, 1977, XIV, 586p. Revised 2018. [GA2] / Sein und Zeit (1927), Tübingen, Max Niemeyer, 1967. / Sein und Zeit. Tübingen : Max Niemeyer Verlag, 1972 , que impediu que se desse uma chance a uma fenomenologia da espacialidade autêntica e, portanto, a uma ontologia da carne. - A noção de ser-lançado (((Geworfenheit))), lançado-aí, seria a categoria existencial mais apropriada para investigar o si como carne, expressando a facticidade a partir da qual o Dasein se torna uma carga para si mesmo, significando a remissão a si mesmo e, portanto, abertura, onde todas as tonalidades afetivas dizem a intimidade a si do ser-aí e as maneiras de aparecer do mundo.
- O projeto-lançado, ou mesmo "decadente" (((Verfallen))), leva ao conceito a estranheza da finitude humana, selada pela incarnação, isto é, pela alteridade prima, distinta da alteridade do estrangeiro, expressando assim o paradoxo de uma alteridade constitutiva do si e dando toda a sua força à expressão "si mesmo como um outro".
- Várias razões explicam este silêncio: o acento colocado na angústia do ser-para-a-morte em detrimento de uma fenomenologia do sofrer; o tratamento da espacialidade do ((Dasein)) como dependente das formas inautênticas do cuidado (((Sorge))), que nos inclina a interpretarmo-nos a nós próprios em função dos objetos da nossa preocupação; e o triunfo da problemática da temporalidade na segunda seção de Ser e Tempo
GA2
Ver online : Paul Ricoeur
RICOEUR, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Editions du Seuil, 1990