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O que é um deus?
Richir (1994) – A situação antropológica da mitologia hoje
Mitologia e questão do pensamento
Como atestam numerosos textos filosóficos (até Schelling
Schelling
Friedrich Schelling
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854)
e Cassirer) e antropológicos, durante muito tempo confundiu-se mitologia e mito. Desde os trabalhos de Cl. Lévi-Strauss (em particular os Mitológicos) e de P. Clastres no domínio ameríndio, isso já não é possível hoje em dia. A mitologia, ou seja, muito especificamente os relatos mitológicos da fundação da ordem cósmica e sociopolítica, encontra-se, por assim dizer, em primeira aproximação, enquadrada por dois outros tipos de formações simbólicas do ser e do pensamento humanos: o pensamento mítico, por um lado, coextensivo a esses tipos de sociedades que P. Clastres muito bem denominou “sociedades contra o Estado”, e o pensamento monoteísta, por outro lado, seja o monoteísmo judaico de instituição antiga, seja o monoteísmo filosófico, de instituição mais recente, e por motivos totalmente diferentes, entre os gregos.
- A confusão entre mitologia e mito foi uma constante, como atestam numerosos textos filosóficos que se estendem até pensadores como Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) e Cassirer, bem como obras antropológicas. - A distinção entre mitologia e mito torna-se imperativa nos estudos contemporâneos, a partir dos trabalhos de Cl. Levi-Strauss (em particular nas Mythologiques) e das análises de P. Clastres no domínio ameríndio.
- A mitologia, entendida de modo específico como os relatos mitológicos de fundação da ordem cósmica e sociopolítica, é enquadrada, em uma primeira aproximação, por duas outras formações simbólicas do ser e do pensar humanos: o pensamento mítico, que é coexistente com os tipos de sociedades que P. Clastres designou de maneira precisa como "sociedades contra o Estado", e o pensamento monoteísta, o qual pode ser o monoteísmo judaico, de instituição antiga, ou o monoteísmo filosófico, de instituição mais recente e por motivações inteiramente diversas, surgido entre os gregos.
- O pensamento mítico se caracteriza, em uma primeira análise, por traços intimamente solidários, incluindo a multiplicidade originária dos mitos, a localidade do problema simbólico que é tratado a cada vez, e a "lógica" peculiar que o articula.
- O problema simbólico é aquele em que algo da instituição simbólica (o conjunto coerente de sistemas simbólicos, como línguas, práticas e representações, que delimitam o ser, o agir e o pensar humanos, garantindo a coesão social, possuindo uma dimensão política, manifestando-se na aparente ausência de sua origem, além de ser o elemento instituinte, determinante e aparentemente imotivado na própria instituição) que era dado como evidente, emerge como não evidente e é questionado.
- A interrogação sobre a origem e legitimidade do problema simbólico se articula em uma modalidade de "experiência em pensamento" que segue a "lógica" estranha do mito.
- A intriga do relato mítico apresenta "metamorfoses" de seres e personagens, correlacionadas ao "maravilhoso" mítico, no qual seres e personagens assumem diversas identidades significantes, confundindo o que são, para nós, seres naturais e seres culturais, ao longo de toda a escala dos seres.
- Não se observa, senão tendencialmente, no pensamento mítico, polarizações ou centrações em personagens "principais" que agrupariam vastos conjuntos de intrigas míticas em torno de seus nomes.
- O pensamento mítico deve ser considerado um pensamento pleno, e não como um pensamento "pré-lógico", "pré-racional" ou em sua "infância", sendo o pensamento de seres humanos que pensam "contra o Estado", o que significa pensar "contra o Uno".
- O Uno (e o poder coercitivo) constitui, para essas sociedades, o risco de implosão da instituição simbólica em um "buraco negro" de caos, um risco contra o qual o pensamento mítico se retoma incessantemente, em princípio até o infinito.
- O pensamento mítico se retoma multiplicando suas "experiências em pensamento" nas quais, diante de um problema particular, ele age como se a instituição simbólica se autoprecedesse para se regenerar, recodificando-se internamente e, assim, redeterminando os termos do problema simbólico para levá-lo à sua "resolução".
- A "resolução" do problema simbólico é invariavelmente harmônica dos termos em questão, culminando na criação de um sentido que seja compatível com o conjunto da instituição simbólica.
- Essa "resolução" se apresenta através de um relato de eventos supostamente ocorridos em um passado mítico que jamais se fez presente e que ninguém testemunhou nem testemunhará, sendo, por essa razão, denominado passado transcendental.
- A instituição simbólica é sempre pressuposta ter-se "reunido" em relação a um ou outro ponto problemático no resultado final do mito, o qual é suposto carregar a memória ou, mais precisamente, a reminiscência transcendental desse passado transcendental.
- A legitimação de uma prática, evento ou situação por meio do mito é sempre "conservadora", nesse sentido, mas não se trata da legitimação de uma autoridade sobre a sociedade, e sim de uma legitimação ou relegitimação da sociedade, em continuidade sem ruptura com o mundo.
- A ideia de um Estado ou de um poder coercitivo sobre a sociedade é, para esse tipo de instituição simbólica, tão perigosa, ameaçadora, absurda e geradora de caos quanto a ideia de uma sociedade sem poder e sem autoridade é apreendida, em nossas sociedades resultantes da instituição do Estado, como o horror da anarquia.
- Com o pensamento mitológico (os relatos mitológicos), há uma mudança de registro, visto que esses relatos se desenvolvem em sociedades onde o Estado (a realeza, o poder político coercitivo) foi instituído, sendo narrativas de fundação da ordem cósmica e sociopolítica.
- No pensamento mitológico, um dos novos "personagens" chamados deuses adquire a soberania ao final de complexas intrigas, e é nela que a soberania real é suposta encontrar a fonte de sua legitimidade.
- O pensamento mitológico é o tipo de pensamento em que os deuses fazem sua entrada em cena simbólica e, por assim dizer, nascem.
- O surgimento dos deuses e do pensamento mitológico implica em várias transformações de relevância em relação ao pensamento mítico, sendo a primeira delas o fato de que os múltiplos relatos míticos originais cedem lugar, em princípio, a um relato fundador.
- Os seres ou personagens "compósitos", em perpétua metamorfose nos mitos, desaparecem, ao menos em parte, para dar lugar aos deuses, que são seres ou personagens dotados de uma identidade simbólica muito mais estável.
- Os deuses carregam sobre si, por um efeito de sobredeterminação, uma diversidade de "poderes" que a filosofia define como poderes "naturais" ou "sobrenaturais", mais ou menos "manifestos" ou "ocultos".
- Os deuses são menos suscetíveis de se metamorfosear por uma "lógica" que lhes escapa, como ocorria nos mitos.
- Se os deuses se metamorfoseiam (como na epopeia ou nas "lendas", prováveis resíduos persistentes dos mitos), isso ocorre por cálculo ou por astúcia, ou como resultado de um cálculo ou astúcia, ou seja, pelo jogo de deliberações ou conflitos.
- Os deuses são, em certa medida, senhores de suas metamorfoses, e o maior deles, que institui a ordem do mundo e da sociedade ao final do relato de fundação, o é absolutamente, pelo reino que estabelece sobre a "sociedade" dos deuses.
- Isso confere ao pensamento mitológico uma aparência de antropomorfismo, que, contudo, não deve ser exagerada.
- Apesar dos conflitos entre os deuses no relato mitológico, o próprio processo de instauração da sociedade estabilizada dos deuses escapa ao seu domínio, estando cada um cegamente confinado ao seu papel.
- Os deuses, com exceção do rei supremo que os domina, são simultaneamente loucos, bestiais e estúpidos, assemelhando-se mais a animais simbólicos do simbólico, maquinados pela intriga simbólica do relato simbólico de fundação, do que a homens.
- A respeito dos deuses, é cabível a reflexão: "Nós pensamos nos possíveis desdobramentos da célebre fórmula de Aristóteles: aquele que vivesse solitário, fora da sociedade, seria um louco ou um deus".
- Quando os homens se assemelham aos deuses, ao serem tomados pela mania divina (na epopeia ou nas "lendas"), eles não são menos loucos, bestiais ou estúpidos, sendo esmagados pelas maquinações dos deuses cuja ordem se restabelece às suas custas.
- A ordem estabilizada dos deuses é codificada na sociedade pela piedade que lhes é devida, como uma dívida simbólica, através da instituição simbólica das práticas religiosas (templos, sacerdotes, cultos, rituais).
- A hybris devastadora dos homens se manifesta sempre por um ultrage inicial ao equilíbrio suposto estável dos deuses, cuja vingança é implacável por consistir apenas em restabelecer o equilíbrio cósmico e social momentaneamente rompido.
- O pensamento mitológico é cúmplice ou ligado à instituição simbólica da realeza, sendo tão "conservador" quanto o pensamento mítico, exceto por ser, dessa vez, a legitimação da autoridade sobre a sociedade.
- A instituição simbólica é, a partir de então, irredutivelmente, a instituição do Estado e de estruturas.
- O pensamento mitológico está a distância do Uno, embora de uma maneira totalmente diferente do pensamento mítico.
- A complexidade dos relatos mitológicos demonstra que a fundação da ordem cosmo-sociopolítica legítima – a fundação distinta da instituição, pois se elabora a partir dos termos simbolicamente codificados pela instituição, recodificando-os e, assim, sobredeterminando-os para criar ou elaborar o sentido da instituição – está longe de ser uma tarefa fácil ou "evidente".
- Enquanto o pensamento mítico tinha a vantagem constitutiva de tratar apenas de problemas simbólicos situados e circunscritos, o pensamento mitológico confronta-se com a tarefa impossível de ter que tratar da instituição simbólica em seu conjunto como o único problema simbólico verdadeiramente colocado.
- O problema é colocado pelo surgimento do Uno do poder, do poder coercitivo como Uno, o que representa o risco de implosão caótica de toda a instituição simbólica.
- Esse risco é igualmente apreendido como uma catástrofe simbólica contra a qual é necessário se prevenir de modo diferente do pensamento mítico, visto que o Uno instituiu-se na ausência de sua origem.
- A fundação nada mais é do que a maneira regulada e estabilizada de afastar essa catástrofe simbólica.
- Os "fracassos" da fundação são figurados nos relatos mitológicos pelas "famílias" de deuses (em Hesíodo
Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) : Uranos, Cronos) onde ainda impera a hybris ou o excesso. - A fundação só pode ser alcançada por "soluços" sucessivos, sendo necessário reconhecer, recodificar ou identificar o risco ou o perigo antes de conjurá-lo (em Hesíodo
Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) , na "família" olímpica, contida pela soberania de Zeus). - Isso confere aos relatos mitológicos uma aparência teleológica global, que significa a emergência de um pensamento concertado em vista da fundação, embora isso não implique o surgimento de uma "racionalidade" que calcule seus efeitos (o que seria uma representação etnocentrista, excessivamente centrada na filosofia).
- Os referenciais simbólicos desse tipo de pensamento simplesmente se condensaram nos deuses.
- Isso indica que o pensamento mitológico está longe de ser um pensamento "inconsciente", e os deuses não são assimiláveis a "significantes" (em sentido lacaniano ou quase-lacaniano) do inconsciente simbólico.
- A segunda transformação, correlativa da primeira e das demais, do pensamento mitológico em relação ao pensamento mítico, é a ausência prática dos humanos nos relatos mitológicos, o que é imediatamente perceptível ao comparar os relatos.
- Os humanos intervêm, no máximo, por alusão furtiva (no início da Theogonia de Hesíodo
Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) , a propósito de Eros), sendo implicados no que ocorre somente no desfecho do relato de fundação. - O que diz respeito aos homens é retomado apenas nos relatos épicos ou nas "lendas", que correm em paralelo aos relatos mitológicos de fundação propriamente ditos.
- O que é encenado nos relatos mitológicos é suposto ser meta-humano ou sobre-humano.
- Os deuses, em sua identidade simbólica, são simultaneamente imortais e gerados, como já assinalava Platão no Timeu ($41\ a-b$).
- O paradoxo dos deuses condensa algo que é também o paradoxo de toda instituição simbólica, a qual, em sua irredutibilidade (sua ausência de origem), parece ser simultaneamente gerada e imortal.
- Nos relatos mitológicos, não há mais "metamorfoses" ou passagens constantes do "natural" ou mundano para o "sobrenatural" ou supramundano.
- O supramundano está sempre na distância do invisível, e se há passagens, é na epopeia ou na "lenda".
- Algo do "maravilhoso" mítico se perdeu irremediavelmente na austeridade assustadora e sublime das intrigas entre os deuses, o que pode ter conferido à mitologia a aparência de uma espécie de "progresso" na "abstração".
- Essa aparência de abstração é reforçada pela terceira transformação: a existência de uma espécie de princípio de não contradição implícito ligado à identidade simbólica dos deuses nos relatos mitológicos.
- A "imaginação" mítica parece se libertar de suas transformações sedimentadas em concretudes em perpétua metamorfose para se retomar de forma mais "pura" nos encadeamentos regulados da intriga.
- Um tipo de logos (tradicionalmente assimilado ao mythos pelos filósofos) assume um lugar preponderante, tendo que lidar com a identidade simbólica dos deuses.
- As "metamorfoses" de deuses a outros deuses são proibidas.
- O elemento genético do relato é representado, em geral, por duas formas de engendramento: por cissiparidade partenogenética (geralmente de uma deusa para outros deuses e deusas) ou por união sexual de um deus e uma deusa.
- Isso dá origem a genealogias divinas, cujo espírito é congruente com os problemas de legitimidade da instituição simbólica da realeza.
- Essas genealogias são, ao mesmo tempo, espécies de dinastias, o que demonstra que a instituição simbólica em seu conjunto, como instituição mantida e garantida por uma autoridade ou um poder, é interrogada em relação ao seu sentido.
- O pensamento genealógico levanta novos problemas: o da partenogênese, o da constante transgressão da proibição do incesto, o do interdito lançado sobre o matricídio e o parricídio, sem contar o problema da divisão sexual entre deuses e deusas.
- Essas transgressões fizeram com que os filósofos, na Grécia, chegassem a afirmar que os relatos mitológicos eram, na realidade, bárbaros e ímpios.
- A condensação simbólica na identidade de um determinado "personagem" divino permite "dividir" e "analisar", através das genealogias, os poderes, caracteres ou atributos simbólicos que estavam sempre mais ou menos refundidos nos relatos míticos.
- A intriga simbólica do relato mitológico é também a intriga da separação progressiva desses elementos a partir de uma "mistura" originária, ou de uma massa ainda incipiente.
- Nesse sentido, a intriga é extraordinariamente rica em correspondências harmônicas, de segundo grau em relação ao fio manifesto da intriga.
- O novo sempre carrega o antigo em eco de múltiplas maneiras, o que torna a "decifragem" do relato quase infinita, pois, no final das contas, nada se perde.
- O todo se explicita por codificações e recodificações dentro das codificações, de modo que, ao se desdobrar, exibe um equilíbrio harmônico entre todos os "poderes", "caracteres" e "atributos" recenseados.
- Se há um logos na mito-logia, ele é um logos harmônico, no sentido desenvolvido por H. Maldiney
Maldiney
Henri Maldiney HENRI MALDINEY (1912-2013) (Aitres de la langue et demeures de la pensée, 1975). - O cratilismo (jogos de palavras ou sobre etimologias) está presente nesse logos harmônico, sendo regulado por ele.
- Torna-se extremamente difícil "reencontrar" as supostas intenções dos "redatores" dos relatos mitológicos sem já as ter compreendido.
- A quarta transformação, não menos importante, é que, enquanto os mitos são o fruto enigmático da elaboração coletiva e anônima da sociedade (sem autores identificáveis), os relatos mitológicos são sempre elaborados por classes eruditas, mais ou menos próximas ao poder real, o que se comunica com o fato de que alguns deles tenham sido transmitidos pela via da escrita.
- Os relatos mitológicos são o fruto de uma elaboração erudita, refletida e complexa, o que não significa que sejam univocamente o resultado de uma criação erudita.
- A questão da articulação entre o pensamento mítico e o pensamento mitológico no momento da instituição da realeza é um nó que sempre nos escapará por falta de documentos.
- A história e a arqueologia indicam que a realeza foi inicialmente a instituição de pequenas realezas locais (o exemplo grego é notável).
- Nesse momento, surgiram os deuses como divindades locais, em relatos dos quais se perdeu o rasto.
- Os grandes relatos mitológicos conhecidos procedem sempre de uma tentativa de unificação dessas mitologias locais: correlativamente à instituição de uma realeza "imperial" (mais vasta), como na Mesopotâmia (Cf. J. Bottéro e S.N. Kramer, Lorsque les dieux faisaient l’homme, 1989), ou correlativamente a um sonho de unificação cultural de diferentes pequenos reinos, como na Grécia (testemunhado pelas epopeias homéricas e pela Theogonia de Hesíodo
Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) ; Cf. G. Nagy, The Best of the Achaeans, 1979). - Os grandes relatos mitológicos conhecidos não são sua própria origem absoluta, mas procedem da reelaboração erudita, unitária e teleológica de materiais que não são míticos, mas mitológicos preexistentes.
- Esses grandes relatos, como o exemplo grego demonstra, não eram necessariamente únicos, podendo ter variantes ou variações.
- Seria um erro antropológico eleger esta ou aquela versão que chegou até nós como versão canônica e a priori necessária.
- A essência da história reside também no fio de suas contingências.
- A quinta e última transformação é que, enquanto o relato mítico narra eventos em um passado transcendental (não histórico, que nunca ocorreu no presente humano), o relato mitológico institui uma espécie de cronologia ou historicidade transcendental global nesse passado transcendental.
- A sucessão das genealogias e dinastias divinas ocorre por encaixe sucessivo de passados transcendentais uns nos outros, do mais original ao menos original, do mais primitivo e caótico ao mais civilizado e organizado, em curto-circuito dos humanos, que são os "tardios" e a partir dos quais começam as vicissitudes da História.
- Existe algo como o problema de uma gênese nas genealogias.
- As genealogias só podem representar o desdobramento da gênese por ensaios ou deslizamentos sucessivos, mutuamente harmonizados e encaixados por codificações e recodificações sempre mais finas do irresolvido em um desenvolvimento quase-musical do pensamento.
- Essa dificuldade de pensar a gênese será reencontrada até no âmago da filosofia, quando esta se confrontar com o problema da gênese.
- A esse respeito, é importante notar que: "Nesse sentido, é manifesto que, de certa forma, a ’distância’ entre o pensamento filosófico e o pensamento mitológico é muito menos ’grande’ do que entre o pensamento filosófico e o pensamento mítico. É por isso que, para desancorar o pensamento mitológico de um ’etnocentrismo’ filosófico facilmente possível, tomamos o partido de apresentá-lo a partir do pensamento mítico".
- Correlativamente, há uma espécie de busca pela origem radical na regressão do pensamento até ela.
- Seja em Hesíodo
Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) com Chaos, Gaia e Eros, ou no relato mesopotâmico da criação (o Enumaelis em Bottéro e S.N. Kramer), é abordada a figuração ou recodificação simbólica do que se supõe ser a origem radical, a mais antiga, algo que já constitui um enigma. - Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) afirmará que os primeiríssimos "seres" da Theogonia de Hesíodo Hésiode
Hesiod
Hesíodo Hesíodo (VIII aC) atestam sua essência filosófica, e não mitológica. - Essa regressão do pensamento mitológico à origem radical atesta, simultaneamente, que a instituição simbólica em seu conjunto é o que está em questão, e que a elaboração simbólica dessa questão pressupõe um pensamento "especulativo", altamente concertado, de um ou de grupos de "sábios".
- Essa "especulação" pode ser definida, no máximo, como "metafísica" no sentido mais amplo do termo, o que pode levar a distinguir no relato mitológico uma fase mais propriamente cosmogônica e uma fase mais propriamente teogônica e sociopolítica ("Cf. M. Detienne e J.P. Vernant, Les ruses de l’intelligence. La metis chez les Grecs, 1974").
- O relato mitológico, por sua elaboração, é congruente com uma certa instituição simbólica da temporalidade.
- O relato visa sugerir que as intrigas, conflitos e combates guerreiros entre os deuses ocorreram no "outro" tempo do passado transcendental para poupar aos humanos o gigantesco e sobre-humano "trabalho" da instituição e da fundação do mundo.
- Em contrapartida, os humanos são devedores desse "trabalho" para com os deuses, devendo prestar-lhes serviços cultuais para manter sua "subsistência", sendo a dívida simbólica dos homens para com os deuses originária e irredutível.
- O próprio rei não está desvinculado dessa dívida, a menos que se identifique aos deuses, o que o leva a ser esmagado no processo de fundação, cego para ele e que o ultrapassa absolutamente.
- Entre o passado transcendental, ele próprio "historicizado" no relato mitológico, e o futuro transcendental que lhe corresponde de maneira indefinida, institui-se propriamente a presença como presença do invisível divino, figurada no Templo e nas efígies dos deuses, durante os rituais religiosos.
- O objetivo é não apenas honrar o passado, mas também preservar o futuro de sua destruição no que seria uma implosão catastrófica da instituição simbólica em sua totalidade.
- O argumento filosófico dos Epicuristas, de que se os deuses são imortais, eles são indiferentes aos destinos dos homens, é, em um sentido, verdadeiro, ao se considerar sua barbárie e crueldade.
- Contudo, em outro sentido, os deuses não são indiferentes, pois só podem existir, paradoxalmente, por meio da presença instituída no santuário e no culto.
- Sem o culto, a imortalidade dos deuses, e, a partir dela, a ordem do mundo e da sociedade (a instituição simbólica), não teria mais consistência do que a das "sombras" dos mortos que circulam e vagueiam indefinidamente, sem força, sob a terra.
- A complexidade do pensamento mitológico, considerado uma forma de pensamento plena por opção metodológica, e as questões que ela coloca para o pensamento são vastas.
- Para concluir, é necessário mencionar o monoteísmo, sobre o qual Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) nos fará retornar em profundidade. - Assim como o pensamento mítico e o pensamento mitológico, o pensamento monoteísta também procede de uma instituição simbólica que é igualmente enigmática em suas profundezas.
- Existem dois monoteísmos: o monoteísmo religioso, de origem judaica, e o monoteísmo filosófico, de origem grega, sendo as duas origens heterogêneas.
- O monoteísmo judaico se institui em curto-circuito de todo desenvolvimento mitológico, e nele as genealogias são imediatamente genealogias humanas, em vez de divinas.
- A luta do monoteísmo judaico será constante contra qualquer ressurgimento tendencial da mitologia (a "idolaria"), e ele sempre se refletirá como a exigência de fidelidade à Aliança original que Deus supostamente selou com o povo, em uma configuração simbólica do teológico-político totalmente original.
- Os elementos de certa forma "arcaicos" ("irracionais") desse pensamento transitaram para as recodificações histórico-genealógicas da própria Aliança, onde se encontram traços estruturais, mas apenas eles, do pensamento mitológico, como se o "a montante" tivesse sido invertido para o "a jusante".
- O monoteísmo filosófico (grego) é totalmente diferente, embora não menos complexo, pois a unificação da instituição simbólica é buscada através de um logos de uma ordem totalmente distinta, rapidamente denominado "racional" sem grande compreensão.
- No monoteísmo filosófico, não há mais genealogia nem dinastia, exceto "lógica" ou "logológica", segundo encadeamentos que se tornaram muito familiares.
- A questão de um possível encontro entre o pensamento filosófico (e seu próprio monoteísmo) e o pensamento mitológico é o que será confrontado ao longo destas páginas.
- A indagação é difícil, apaixonante, mas formidável, sobre o encontro possível (ou impossível) de duas instituições simbólicas diferentes do pensamento.
Ver online : Marc Richir
Marc Richir, "O que é um deus?", em SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Philosophie de la mythologie. Tradução: Alain Pernet. Grenoble: J. Millon, 1994.