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O que é um deus?
Richir (1994) – A psicose transcendental e a origem da mitologia
Mitologia e questão do pensamento
Schelling
Schelling
Friedrich Schelling
FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854)
caracteriza as relações entre a humanidade e o Um relativo como sendo, em si mesmas, “inconcebíveis” (unvordenklich) (184; 224). Este termo é, na realidade, intraduzível, exceto que, em relação ao tempo, significa “imemorial”. Corresponde, portanto, para o tempo, ao passado transcendental, passado do que nunca esteve presente. De maneira mais geral, caracteriza o que surge independentemente de qualquer “representação” (que constituiria, à sua maneira, o que seria pré-pensável, vor-denklich), portanto, o que não pode ser visado previamente em uma intenção, o que ocorre inesperadamente, na surpresa de todo pensamento. O impensável é, nesse sentido, o que não se espera e o que não se esperava, e pertence ao que H. Maldiney
Maldiney
Henri Maldiney
HENRI MALDINEY (1912-2013)
denomina transpassibilidade. Esse é um elemento muito importante que comentaremos em detalhes.
- As relações entre a humanidade e o Uno relativo são caracterizadas por Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) como "não-pré-pensáveis" (unvordenklich) (184; 224), termo que, embora intraduzível, significa "imemorial" quando relacionado ao tempo, correspondendo ao passado transcendental, o passado daquilo que nunca esteve em presença, e mais geralmente, aquilo que surge independentemente de qualquer "representação" (o que seria pré-pensável, vor-denklich), ocorrendo inopinadamente, na sur-presa de todo pensamento, e enquadrando-se no que H. Maldiney Maldiney
Henri Maldiney HENRI MALDINEY (1912-2013) chama de transpassibilidade. - Retomando a questão da origem de Deus e da mitologia, Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) introduz um terceiro termo além dos dois monoteísmos – o monoteísmo propriamente dito e o monoteísmo apenas relativo (que só é monoteísmo porque ainda esconde (verbergen) sua contraparte em si) – postulando a possibilidade de a consciência não estar em relação com Deus, seja o verdadeiro ou o que deve ser exclusivo de outro. - O fundamento (Grund) de o homem estar em relação com Deus não pode mais residir na primeira consciência efetivamente real, mas sim além dela, onde não há mais nada a pensar senão o homem, ou a consciência em sua pura substância antes de toda consciência efetivamente real, onde o homem não é consciência de si (o que exigiria um devir consciente, ou seja, um actus), mas, por dever ser consciência de algo (etwas), ele só pode ser consciência puramente substancial de Deus, não ligada a um actus como saber ou querer (184-185; 224).
- O homem original é o que postula Deus (das Gott Setzende), não actu (por ato), mas natura sua (por sua natureza), e, sendo Deus apenas pensado um abstractum, e o Uno apenas relativo já pertencente à consciência efetivamente real, a consciência original só pode ser o que postula (das Setzende) Deus em sua verdade e sua absoluta unidade (184-185; 224).
- Deste modo, o monoteísmo seria a "pressuposição última da mitologia", desde que entendido apenas como "o simples postular do verdadeiro Deus em geral" (185; 224-225).
- Este seria um monoteísmo supra-histórico, e não um monoteísmo "do entendimento humano", mas sim um "monoteísmo da natureza humana" (185; 225), porque "o homem em seu ser (Wesen) original não tem outro significado senão o de ser a natureza postulando-Deus, porque ele só existe originalmente para ser este ser (Wesen) postulando Deus, portanto não a natureza sendo para ela mesma, mas a natureza voltada para Deus, por assim dizer extasiada (verzückt) em Deus" (ibid.).
- Este estado não é "místico", mas, pelo contrário, a mística visa retornar ou reencontrar esta "absorção" (Versenkung) em Deus (cf. 185-186; 225).
- Este paradoxal retorno além dos dois monoteísmos até a "pura substância" da consciência reconduz ao monoteísmo original e ao estado original – que havia sido "heuristicamente" abandonado para a consciência do primeiro deus – como um estado de psicose transcendental.
- O estado é transcendental por seus traços de reconstrução especulativa de um estado original constituinte, e psicótico porque o si da consciência de si não é o si da própria consciência, mas o si de um outro, o si do Outro, de Deus, no qual a consciência está extasiada e absorvida, além de qualquer ato de si mesma.
- A consciência, ao postular Deus, não o faz de maneira refletida, mas irresistivelmente, por uma espontaneidade absoluta que é também passividade absoluta (a consciência é absolutamente passiva em relação à sua natureza, e esta natureza é absolutamente espontânea), de tal modo que todo o seu ser (Wesen) passa para sua postulação, e ela só encontra este ser em Deus.
- Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) descreve aqui a implosão identitária do sentido (aqui da consciência) no "buraco negro" do Uno, que, do ponto de vista da arquitetônica fenomenológica, é a crise que ameaça o pensamento e o ser (a humanidade) desde que pensamento, ação e ser se instituam sob o regime do Uno – e, do ponto de vista sociopolítico, sob o regime do poder sociopolítico do rei ou do Despota. - Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) está correto em pensar este momento como de origem, sendo o momento mesmo daquilo que, desde a instituição do Uno-Despota, surge ou é suposto ser o instituinte da instituição simbólica em sua globalidade. - O interesse na descrição de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) reside no fato de ele considerar este momento com todos os caracteres de sua absorção no que se chama de "psicose transcendental": a implosão identitária no "buraco negro" do Uno seria o "momento" arquitetonicamente necessário do sublime do Uno levado ao seu extremo $22$, onde a consciência estaria morta para si mesma por ser apenas a consciência do Outro, o Si do instituinte simbólico como Uno. - Esta consciência, para usar termos hegelianos, é pura substância e não sujeito, sendo a consciência "louca" que se realizaria se o gênio maligno cartesiano atingisse seus fins, uma consciência cujo todo o si é o de um outro, ou do Outro, e que, neste sentido, é inconsciência, ou inconsciente.
- Retornando à passagem deste "estado original" transcendental para a origem da História e do politeísmo, Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) afirma que o primeiro movimento da consciência a afasta do Deus verdadeiro que ela postula cegamente, e prossegue: "na primeira consciência efetivamente real ainda não há dele senão um momento (pois é assim que podemos provisoriamente considerar também o relativamente Uno), e não Deus ele mesmo; já que, portanto, a consciência, na medida em que sai de seu estado original (Urständ), que se move, se afasta de Deus, não lhe resta nada além de seu arrebatamento violento por ele, ou o fato de que ela tem Deus em si (an sich), em si no sentido em que se diz de um homem que ele tem em si uma virtude, ou mais frequentemente que ele tem em si um vício, pelo que se quer precisamente dizer que não lhe é um objeto, não algo que ele queira, e nem mesmo algo que ele saiba" (186-187; 226). - O homem (sempre o homem original e essencial) está em si mesmo (an sich selbst) por assim dizer à frente de si mesmo, ou seja, antes que ele se possua (haben) a si mesmo, antes que se torne outro (o que já acontece ao retornar a si mesmo, tornando-se objeto para si mesmo), e "o homem na medida em que precisamente ele apenas é e ainda não se tornou nada, é consciência de Deus, ele não tem esta consciência, ele é, e é justamente, somente no não-ato, no não-movimento, que ele é o que postula o Deus verdadeiro" (186-187; 226).
- Neste estado de psicose transcendental, o homem original é cegamente consciência de Deus, uma consciência de si onde o si é o de Deus, e ele o é no não-ato, o não-movimento, ou seja, na proximidade absoluta e na passividade absoluta.
- O "monoteísmo da consciência original", ou a crise do Uno, é primeiramente "aderente à substância da consciência" (187; 226), sendo o sub-stans desta o próprio Deus.
- Em seguida, em virtude desta ligação, ele não é postulado nem se tornou no tempo (histórico), mas é "eterno", fazendo parte da natureza humana (187; 227).
- Por fim, é "natural" e "cego", não se sabendo a si mesmo na consciência, sendo a origem tanto do monoteísmo quanto do politeísmo (187-188; 227-228).
- Acrescenta-se a isso, como modalidade da captura da consciência por Deus, o fato de que Ele aparece (na medida em que pode!) como Deus da potência (Macht) ou da força (Stärke) (189; 229).
- Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) reavalia a saída deste estado, a passagem para a mitologia, da seguinte forma: "… o homem não pode persistir neste ser-fora-de-si, ele deve aspirar a sair deste ser-engolido em Deus, para transformá-lo em saber de Deus, e por conseguinte em uma relação livre" (189; 229-230). - A matriz da subestrutura idealista é retomada, com a consequência da recodificação do intervalo inicial em intervalos menores: "Mas o homem só pode chegar lá por graus. Se sua relação original se suprime (aufheben), não é, portanto, sua relação com Deus em geral que é suprimida, pois esta última é uma relação eterna, insuprimível. Tendo-se tornado ele mesmo efetivamente real, o homem recai em Deus em sua realidade efetiva. Ora, se admitirmos […] que Deus é múltiplo segundo suas formas de existência, assim como é uno segundo seu si divino ou sua essência, compreendemos em que repousa o caráter sucessivo do politeísmo, e para que ele tende. Nenhuma destas formas tomadas por si é idêntica a Deus, mas se elas se tornam unidade na consciência, esta unidade tornada enquanto tornada é também uma unidade sabida com a consciência do monoteísmo adquirido" (189-190; 230).
- Neste sentido, o politeísmo sucessivo é uma espécie de "fenomenologia", transposta mutatis mutandis, de Deus, ou seja, mais precisamente, o ritmo da progressiva colocação à distância da implosão identitária no "buraco negro" do Uno.
- Esta colocação à distância pode ser vista como a elaboração simbólica da fundação afastada do "ponto extremo" da instituição, e do instituinte simbólico, onde estes parecem, pelo menos do ponto de vista da arquitetônica fenomenológica, como o "ponto extremo" do sublime do Uno onde a consciência "morre" no estado da psicose transcendental.
- Contudo, Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) não concebe as coisas exatamente assim, pois o relacionamento de saber ou o relacionamento livre só é alcançado com a Revelação, considerando o politeísmo sucessivo como pertencente a um processo, o processo teogônico, mais ou menos cego, do qual está ausente a elaboração simbólica (que só pode ser consciente e concertada). - Para Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) , a recodificação do intervalo inicial em intervalos menores é um processo inconsciente, em que cada etapa traz de volta o risco de psicose transcendental, como um eco retardado da psicose transcendental original. - É crucial medir até que ponto este risco está presente no processo original de individuação dos deuses, ou seja, no processo original de sua condensação simbólica.
- A origem da mitologia é investigada com a premissa de que sua mobilização deve ser, à sua maneira, um afastamento do "buraco negro" do Uno, onde a consciência é transcendentalmente psicótica.
- "O fundamento (Grund) da mitologia encontra-se já na primeira consciência efetivamente real, da qual o politeísmo segundo o seu ser (Wesen) já nasceu na passagem para esta. Disto resulta que o ato pelo qual o fundamento do politeísmo é posto em jogo não cai ele mesmo para dentro da consciência efetivamente real, mas se encontra fora dela. A primeira consciência efetivamente real se encontra (findet sich) já com esta afecção (Affection) pela qual é separada de seu ser (Seyn) eterno e essencial. Ela não pode mais a ele retornar e tampouco ultrapassar esta determinação do que a si mesma. Esta determinação tem, portanto, algo de incompreensível para a consciência, ela é a consequência não querida e não prevista de um movimento que ela não pode retomar. Sua origem encontra-se em uma região à qual, uma vez que dela está separada, não tem mais acesso. O recém-chegado (das Zugezogene), o contingente, transforma-se em um necessário e adota imediatamente a figura de algo que não pode mais novamente ser suprimido" (192; 233).
- Esta "afecção" com a qual a consciência "se encontra" é pensada como uma Stimmung (humor, disposição de ânimo), e até mesmo uma Grundstimmung (disposição fundamental), relacionada à Befindlichkeit (aqui-estar), sendo uma Grundstimmung (disposição fundamental) em vez de uma Bestimmung (determinação) no sentido de determinação, pois surge para a consciência como tendo sido temporalizada a partir de um passado que lhe escapa irredutivelmente e que ela não pode "retomar", sendo sempre tarde demais.
- A Afecção é Stimmung porque aparece como a origem muda para além da qual a "consciência" não pode ir, permanecendo a origem em si mesma (a psicose transcendental) realmente inacessível, separada dela mesma pela distância intransponível da afecção que se impõe com necessidade.
- O desvio da afecção, que é o desvio em relação ao estado original, surge de um ato que escapa à consciência, mas onde ela se encontra para si mesma, afastada ou à revelia de Deus (do Outro), com a contingência radical do "recém-chegado", daquilo que "não se esperava": este desvio da afecção é o "trans-" da transpassibilidade no sentido de Maldiney
Maldiney
Henri Maldiney HENRI MALDINEY (1912-2013) . - Com esta afecção, esta Stimmung, a "consciência" se afeta ou se recebe, não em coincidência, mas à distância de si (e de si como do si do Outro), e é a "consciência efetiva e real" que finalmente começa a se acolher a si mesma, ao sair, pela distância e pelo desvio, da psicose transcendental.
- O movimento de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) prossegue: "A alteração da consciência consiste em que nela não vive mais o Deus pura e simplesmente Uno, mas somente o Deus relativamente Uno. Mas a este Deus relativo sucede o segundo, não por acaso, mas segundo uma necessidade objetiva que, certamente, nós ainda não compreendemos, mas que, no entanto, somos constrangidos a reconhecer de antemão como tal (objetiva). Com esta primeira determinação a consciência está, portanto, ao mesmo tempo submetida à sucessão necessária de representações pela qual surge o politeísmo propriamente dito. Posta a primeira afecção, o movimento da consciência através destas figuras que se sucedem é um movimento tal que pensamento e vontade, entendimento e liberdade não têm mais parte nele. A consciência está de repente neste movimento, embrenhada de uma maneira que não lhe é mais compreensível a si mesma. Ela se relaciona com ele como com um destino, como com uma fatalidade, contra o qual nada pode. Há contra a consciência uma potência (Macht) real (real), ou seja, que não se encontra mais em seu poder, que se apoderou dela. Antes de todo pensamento ela já está absorvida por este princípio, cuja consequência simplesmente natural é a pluralidade dos deuses e a mitologia" (192; 234). - Esta humanidade estava "atingida por uma espécie de estupor (stupefacta quasi et attonita), apreendida por um poder estranho, posta fora de si, ou seja, fora de seu próprio poder" (193; 234).
- O trecho é enigmático e paradoxal, pois Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) curto-circuita uma mediação, postulando que o politeísmo sucessivo "se produz na consciência sem sua intervenção" (ibid.), e que a mitologia é engendrada por um "processo necessário" (193; 235) cuja origem está a montante da consciência efetiva e real. - Para Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) , este processo, que ele chama de processo teogônico, é inconsciente, e é nesta medida que, surgindo imediatamente para a consciência, o primeiro deus e os seguintes se apoderam dela, absorvendo-a da mesma maneira, repetindo a cada vez o estado de psicose transcendental, onde a consciência está atônita, estupefata, sem voz, fora de si e sem reflexividade. - O que se abre pela afecção se fecha imediatamente, e a afecção, a Stimmung, é assim remetida, a cada vez, ao estatuto de Verstimmung (desafinação) transcendentalmente "patológica", ou seja, aquilo que é recebido absolutamente sem distância em uma passividade absoluta da consciência.
- Na repetição do politeísmo sucessivo, o monoteísmo original se reinstaura a cada vez, e só o faz com esta "extremidade" do sublime, condensada, para a consciência, no estupor.
- A Stimmung, não temporalizada, mas imediatamente retomada na psicose transcendental, é, afinal, Bestimmung (fixação), fixação da consciência sob a dominação de um poder outro, extra-posição de seu si ao si de um Outro, ou seja, implosão simbólica identitária no "buraco negro" de um deus.
- O deus schellinguiano é próximo do "significante" lacaniano, significando que as diferentes idades (dinastias) do politeísmo sucessivo representariam diferentes configurações significantes do inconsciente simbólico, desdobradas a cada vez em um politeísmo simultâneo, sob a figura representada como dominante de um deus (Urano, Cronos, Zeus) como "figura" do Outro.
- Esta "hipótese", que os comentários de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) sugerem (cf. 193-195; 235-237), busca explicar como os homens puderam acreditar em absurdos da mitologia e sacrificar de forma cruel, e evidencia que toda "massificação" ou "densificação" da mitologia e dos deuses, no sentido de uma adesão supostamente completa e unívoca da consciência à sua significância "em buraco negro", procede de um etnocentrismo, ou de uma incapacidade do nosso pensamento – situado na "racionalidade" filosófica – de pressentir que o pensamento pode pensar de outra forma, permanecendo um pensamento por direito próprio, e não um pensamento "maquinado" de fora pelo "processo mitológico" que se assemelha a um Gestell simbólico, uma "economia" bizarra da psicose transcendental, onde a consciência apenas "pisca" no piscar da afecção entre sua abertura e seu fechamento imediatos. - Se os deuses, pelo menos os deuses-dinastas, não são "buracos negros" nos quais a consciência se engole a cada vez (pois se fossem, não haveria sua sucessão, sua progressão, numa "fenomenologia" quase hegeliana), resta a ambiguidade sobre o que eles são, como se "condensam", e como se articulam com a afecção, com a Stimmung – antes que esta se torne Bestimmung (determinação).
- Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) está dilacerado entre exigências contraditórias que colocam o pensamento e a linguagem filosófica à beira de si mesmos, o que é de interesse para o filósofo e o fenomenólogo hoje. - Neste contexto ambíguo, a brilhante defesa de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) da mitologia como tautegoria deve ser considerada: "Porque a mitologia não pôde surgir de maneira artificial, mas de maneira natural, e até mesmo, segundo nossa pressuposição, necessária, conteúdo e forma, matéria e revestimento não podem se distinguir nela. As representações não estão primeiro presentes sob uma outra forma, mas elas surgem apenas nesta forma e, portanto, ao mesmo tempo também com esta forma. Trata-se de um devir orgânico […]" (195; 237). - Na linguagem do idealismo alemão, a mitologia, na qual sintaxe e semântica seriam indissociáveis, seria originalmente o "sistema do espírito humano" (Fichte
Fichte
Johann Gottlieb Fichte JOHANN GOTTLIEB FICHTE (1762-1814) ), ou até mesmo o sistema (Hegel Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) ), pelo menos em seu começo, do espírito absoluto. - Se levada ao pé da letra, isso significa que a articulação da mitologia é a articulação simbólica do inconsciente simbólico (onde toda consciência já está tomada, e a tautologia simbólica do absoluto é o próprio Deus); se tomada com certa "relatividade" (como Fichte
Fichte
Johann Gottlieb Fichte JOHANN GOTTLIEB FICHTE (1762-1814) ), a mitologia histórica, documentada, seria o relato humano, mais ou menos concertado, de um sistema inconsciente. - Quando Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) fala do "devir" mitológico como "devir orgânico", ele quer dizer que é "sistemático" e "inconsciente" na medida em que é "natural". - A continuação do texto confirma: "Porque a consciência não escolhe nem inventa as representações nem sua expressão, a mitologia surge imediatamente como tal, e em nenhum outro sentido senão o que ela enuncia. Em razão da necessidade com a qual se produz o conteúdo das representações, a mitologia tem desde o começo significação real (reell) e doutrinal: e em razão da necessidade com a qual surge também a forma, ela deve ser compreendida, absolutamente, tal como se enuncia, ou seja, tudo o que está nela deve ser compreendido desta maneira, e não como se algo outro fosse pensado e dito. A mitologia não é alegórica, ela é tautegórica. Os deuses são para ela seres (Wesen) existindo efetivamente, que não são algo outro, que não significam algo outro, mas significam apenas o que são" (195-196; 237-238).
- Embora este princípio deva ser aceito como exigência metodológica (implicando uma epochè fenomenológica do modo de pensar, da instituição simbólica da língua filosófica), deve-se lê-lo com cautela crítica quando é levado ao extremo.
- É preciso distinguir entre a instituição simbólica propriamente dita do pensamento mitológico (que se dá na ausência de sua própria origem) e a reelaboração simbólica, erudita e concertada, ou seja, consciente, da mitologia nos relatos mitológicos documentados.
- O erro original de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) foi confundi-las, pois não se dispõe de nenhum documento atestável para a instituição propriamente dita do pensamento mitológico, mas apenas de traços através dos relatos mitológicos e épicos (que serviram de materiais para estes últimos). - A situação é análoga à da Wissenschaftslehre (W-L) fichtiana: a distância entre o pensamento mitológico em sua instituição enigmática e os relatos mitológicos seria a mesma que entre a W-L como sistema (inconsciente) do espírito humano e a W-L como "ciência" $23$.
- Neste sentido, a mitologia como "sistema" inconsciente não é atestável em lugar nenhum, mas só pode funcionar como uma espécie de matriz transcendental de reelaborações simbólicas sempre originais.
- Nos relatos mitológicos atestados, já existiria, sempre, uma separação pelo menos inicial e problemática entre forma e conteúdo, matéria e revestimento.
- Esta distância mínima é necessária para que a mitologia "funcione" como tautegoria, pois sem ela, a mitologia seria apenas a articulação cega de "buracos negros" de sentido, segundo as "leis" de uma "gravitação" inteiramente inconsciente: um muro para sempre ininteligível, o testemunho de uma "loucura original" (a psicose transcendental) da consciência.
- Neste sentido, os deuses não são e nunca foram "significantes" em um sentido quase lacaniano, pois só podem ser pensados, no pensamento mitológico, sendo originalmente reelaborados, no trabalho da instituição mitológica sobre si mesma, ou seja, na elaboração da língua mitológica.
- Se esta elaboração e reelaboração pressupõem necessariamente um "sistema mitológico" como inconsciente simbólico do pensamento mitológico, é uma questão que Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) irá investigar (cf. também 201 in fine; 245). - Este "sistema" é denominado por Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) processo teogônico, que é, para ele, o ponto mais profundo do pensamento mitológico, onde História e doutrina são indissociáveis. - Sobre este processo, Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) escreve: "Vista objetivamente, a mitologia é aquilo para o qual ela se apresenta: teogonia efetivamente real, História dos deuses; contudo, como os deuses efetivamente reais são apenas aqueles em cujo fundamento se encontra Deus, o conteúdo último da História dos deuses é o engendramento, um devir efetivamente real de Deus na consciência, ao qual os deuses se relacionam apenas como os momentos individuais que o engendram" (198; 240-241). - Retorna a subestrutura idealista e etnocentrista do pensamento schellinguiano, na qual a teogonia é mais o engendramento de Deus do que o engendramento dos deuses.
- Esta visão tem uma certa relevância arquitetônica e heurística por estar articulada com a psicose transcendental e com o que se chamou de crise do Uno, a crise que a humanidade deve ter atravessado na instituição do Estado.
- O monoteísmo está em jogo transcendentalmente nesta crise, embora não se possa afirmar, como Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) parece fazer, que ela só se resolve com a instituição do monoteísmo "verdadeiro", o que implicaria que o politeísmo sucessivo é apenas o processo cego e inconsciente de sua "preparação". - A leitura prossegue: "Subjetivamente ou segundo o seu surgimento a mitologia é um processo teogônico. É 1) um processo em geral que a consciência efetivamente realiza, ou seja, de tal forma que ela é constrangida a deter-se nos momentos individuais, e que é sempre no momento seguinte que ela estabiliza o momento que o precedeu, portanto que ela vive o movimento no sentido próprio. É 2) um processo efetivamente teogônico, ou seja, que se de-escreve (herschreiben) de uma relação essencial da consciência humana com Deus, de uma relação na qual, segundo sua substância, ou em virtude da qual ela é em geral o que postula Deus (das Gott-setzende) naturalmente (natura sua). Porque a relação original é uma relação natural, a consciência não pode sair dela sem ser reconduzida a ela por um processo. Por isso ela não pode evitar de aparecer novamente como o postulante de Deus, mas de forma ainda apenas mediata – ou seja, precisamente através de um processo –, isto é, ela não pode evitar de aparecer precisamente como o engendrador de Deus, consequentemente como teogônica" (198; 241).
- Neste movimento de aparência "fenomenológica" (no sentido hegeliano), as estações ou "momentos" são a cada vez aqueles em que a consciência aparece como postulando Deus, segundo suas diferentes figuras (com a consciência se identificando por "psicose transcendental"), e o movimento é o do próprio processo.
- Se existe fenomenologia de Deus e dos deuses na filosofia da mitologia, ela deve ser buscada no processo, o que é paradoxal, pois o processo parece ser totalmente inconsciente.
- A questão fundamental é como a consciência se põe em movimento, sai da psicose transcendental, se afasta da implosão identitária no "buraco negro" do Uno, para alcançar o verdadeiro lugar de origem da mitologia, da história dos deuses.
- Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) oferece um primeiro tratamento desta questão em passagens densas (207-210; 249-253) da nona lição da Introdução Histórico-Crítica. - "Não são de forma alguma as coisas com que o homem lida no processo mitológico, são potências (Mächte) surgindo na interioridade da própria consciência, e pelas quais ela é posta em movimento. O processo teogônico pelo qual nasce a mitologia, é um processo subjetivo, na medida em que se desenrola na consciência, e se manifesta pelo engendramento de representações: mas as causas, portanto também os objetos destas representações, são as potências (Mächte) efetivamente e em si teogônicas, precisamente aquelas pelas quais a consciência é originalmente o postulante-Deus. O conteúdo do processo não consiste apenas nas potências (Potenzen) representadas, mas nas próprias potências (Potenzen) – são elas que criam a consciência, e pelo fato de que a consciência é apenas o fim da natureza, são elas que criam a natureza, e que, portanto, são também potências (Mächte) efetivamente reais. Não é com objetos naturais que o processo mitológico lida, mas com as puras potências (Potenzen) criadoras, das quais a própria consciência é a primeira criação" (207; 249-250).
- Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) desdobra aqui sua visão metafísica da mitologia, grandiosa e afetada por um erro arquitetônico $25$. - O que é potência (Potenz) do ponto de vista especulativo é potência (Macht) ou poder do ponto de vista da consciência, na medida em que o processo mitológico é a retomada do movimento da própria natureza, não em seus objetos, mas em suas Potenzen, na consciência humana.
- A mitologia seria, para Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) , a Filosofia da Natureza (Naturphilosophie) "natural" ao homem, por ser o recomeço, no homem ainda nascente, da criação divina da natureza. - Estas potências não são ainda os próprios deuses (pois são potências teogônicas), e o que põe a consciência em processo ou em movimento é a natureza, no jogo de suas potências.
- "O processo mitológico que tem por causas as potências (Potenzen) em si teogônicas, não é apenas de significação religiosa em geral, mas de significação objetivamente religiosa; pois são as potências em si postulantes de Deus que agem (wirken) no processo mitológico. Mas mesmo com isso, a significação última ainda não é alcançada" [pois resta explicar o engendramento do politeísmo, e o primeiro deus A é um "monoteísmo potencial"…]. "Este, portanto, poderia ao menos ser aquele que se destruiria no processo teogônico, e poder-se-ia agora dizer: as mesmas potências (Potenzen) que em sua ação concertada (Zusammenwirken) e em sua unidade fazem da consciência o postulante-Deus, tornam-se em sua divergência (Auseinandergehen) as causas do processo, pelas quais os deuses são postulados, portanto pelas quais surge a mitologia" (208; 250-251).
- A questão da origem da mitologia é deslocada um passo: o que causa a divergência das "potências" (Potenzen) no seio de sua "ação concertada", de sua unidade?
- A origem e o estatuto desta ruptura da unidade harmônica das "potências" – necessária para compreender o engendramento da mitologia – opõem-se, formalmente, à subestrutura do esquema idealista de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) (posição, destruição, reconstrução), onde a destruição só poderia ser aparente, uma mediação para a reconstrução (cf. 208; 251). - Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) responde à objeção que ele mesmo se faz: "A mitologia é politeísmo essencialmente sucessivo, e este só pode nascer por uma sucessão efetivamente real de potências (Potenzen) na qual a precedente requer a seguinte, e a seguinte é completada pela precedente, e onde finalmente, portanto, a verdadeira unidade é novamente postulada; mas justamente esta entrada em cena sucessiva dos momentos que compõem e restabelecem a unidade seria, no entanto, um movimento de divergência, pressupor-se-ia ao menos que já estivessem divergidos" (208-209; 251-252). - A aporia da coexistência do idealismo e da "fenomenologia" – da "temporalização" das potências em sucessão genética – é clara.
- A explicação de Schelling
Schelling
Friedrich Schelling FRIEDRICH WILHELM JOSEPH SCHELLING (1775-1854) é: "Poder-se-ia conceder este último ponto (scil. a divergência quase-original), mas com a condição de acrescentar que esta divergência não se produz no processo ele mesmo que engendra a mitologia, pois neste as potências (Potenzen) só sobrevêm em sucessão para postular novamente e engendrar a unidade. O sentido do processo não é, portanto, a divergência, mas sim a convergência (Zusammengehen) dos momentos que postulam a unidade, o processo ele mesmo não consiste em sua separação mas em sua reunificação. O motivo (Anlass) do processo é, segundo toda aparência, uma potência (Potenz) que o dá, potência que se apoderou da consciência, sem que esta tivesse o pressentimento, de maneira exclusiva, portanto com a exclusão das outras [potências]; mas justamente esta potência (Potenz), que nesta medida suprime a verdadeira unidade, se transforma, se assusta novamente da exclusividade, e, superada pelo processo, ela [se transforma] na [potência] que postula a unidade, não mais apenas de forma muda, mas de forma efetiva, ou, se posso me expressar assim, cum ictu et actu, de tal sorte que o monoteísmo postulado por isso é também monoteísmo efetivamente real, tendo nascido, e portanto ao mesmo tempo compreendido, ele mesmo objetivo para a consciência. O falso pelo qual a tensão é postulada, o processo motivado, encontra-se, portanto, antes do processo; no processo enquanto tal (e é isso que importa), não há, portanto, nada de falso, tudo é verdade" (209; 252). - Em outras palavras, "o politeísmo sucessivo não é senão o caminho de reengendramento da verdadeira unidade, a multiplicidade dos deuses enquanto tal não é senão o acidental que se suprime novamente no todo" (210; 253).
- "As diferentes mitologias não são senão os momentos diferentes do processo mitológico" (211; 255), e "o si divino não está na consciência mitológica, mas apenas sua imagem (Gleichbild)" (212; 256).
- Esta matriz especulativa articula toda a filosofia schellinguiana da mitologia, pressupondo que seu inconsciente simbólico é o engendramento de Deus – o Deus da Revelação.
- O monoteísmo, e o monoteísmo "verdadeiro", é o "sistema do espírito humano" e, mais profundamente, o "sistema" mesmo do ser e do pensar, ou seja, o "sistema" mesmo da instituição simbólica em geral.
- Em relação a este sistema, a mitologia é apenas uma "versão" humana e aproximada, uma versão "finita", "unilateralizada" pela finitude, ou seja, pela deslocação (a "divergência") da harmonia das potências, e a apropriação exclusiva, resultante, de uma potência sobre a consciência humana.
- Aí reside "o falso", a aparência na qual a consciência mitológica cai, pois o "verdadeiro", como em Hegel
Hegel
Georg Wilhelm Friedrich Hegel Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) , é a totalidade do processo. - Deste ponto de vista, só existe fenomenologia do falso, da aparência, e ela deve ser reabsorvida no "sistema" absoluto do absoluto, que é o monoteísmo.
- Esta redistribuição do "verdadeiro" e do "falso" é etnocentrista e dogmática, e não oferece resposta à questão da "deslocação" ou da "divergência" das potências, que tem todas as características de um "desvio", ou de um "ato falho" da consciência mitológica.
- Este "ato falho" é a origem da "fenomenologia" da consciência mitológica, para a qual é preciso se voltar para tentar identificar seus traços autônomos nos dois primeiros ensinamentos da Filosofia da Mitologia propriamente dita.
Ver online : Marc Richir
Marc Richir, "O que é um Deus?", em SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph von. Philosophie de la mythologie. Tradução: Alain Pernet. Grenoble: J. Millon, 1994.’’