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De la passivité dans la phénoménologie de Husserl
Montavont (1999:9-14) – fenomenologia da passividade
La part d’ombre de la phénoménologie husserlienne
Gostaríamos de mostrar que uma filosofia dos atos da consciência não é incompatível com uma fenomenologia da passividade [1], e [10] talvez ainda mais, que uma reflexão sobre a passividade só pode começar em uma filosofia que remete todo objeto constituído a uma consciência constituinte, ou seja, ao ato de uma instância subjetiva. A passividade não é nem uma qualidade do objeto nem uma propriedade do sujeito, mas uma relação de sentido entre o sujeito e o objeto (seja esse objeto exterior ao sujeito ou o próprio sujeito), ou seja, um modo intencional de consciência, uma maneira de estar presente no mundo: só há passividade no ato, seja essa passividade precedendo, acompanhando ou seguindo o ato. Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
não estende a definição tradicional do ato para incluir a passividade, acabando por pensar em um ato passivo ou em uma intenção passiva na qual o eu ainda participa (o problema sendo definir essa “participação do eu”, essa Ichbeteiligung)? Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
tentou pensar, através da noção de “intencionalidade passiva” (passive Intentionalität), o que Merleau-Ponty
Merleau-Ponty
Maurice Merleau-Ponty
MAURICE MERLEAU-PONTY (1908-1961)
Extratos por termos relevantes
chama de “a passividade de nossa atividade” [2]? Ao enraizar a receptividade em uma passividade ainda mais originária — a predoação afetiva [3] — e ao encerrar a atividade em uma passividade englobante [4], ele desloca as fronteiras tradicionais entre sensibilidade e espontaneidade, entre sensível e inteligível. Essa redefinição das fronteiras entre passividade e atividade vai, aliás, além do domínio específico da teoria do conhecimento: o problema da passividade e da atividade atravessa a fenomenologia em geral [5].
Propõe-se aqui ler o “giro genético” dos anos 1920 como uma limitação interna dos poderes constitutivos do sujeito, que vem questionar a sua soberania absoluta, a sua posição de fundamento último do edifício da constituição. Reconhece-se que, em parte, essa fragilização do sujeito tenha ocorrido à revelia do próprio Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
; contudo, o empenho husserliano em salvar a presença — e mesmo a precedência — do sujeito nas camadas de sentido mais inferiores, as camadas passivas, manifesta não apenas uma certa tomada de consciência das implicações do método genético quanto ao sentido mesmo do projeto fenomenológico, mas também — e antes de tudo — aprofunda a própria noção de sujeito, conduzindo-a a um aquém do ato e da atualidade.
Que esse gesto arqueológico não revele outra coisa senão um sujeito — apesar de tudo e contra tudo —, é isso que o presente trabalho busca elucidar: em vez de interpretar o anonimato do sujeito transcendental como o fracasso da fenomenologia husserliana e, portanto, como o fracasso da filosofia do sujeito, vê-se nele um convite a repensar o sujeito em seu modo de ser originário, que é presença viva e afetiva a si mesmo. Se a filosofia husserliana do sujeito não exclui uma passividade do próprio sujeito, não seria isso porque o sentido último desse sujeito consiste em ser, não um ato, mas uma vida intencional?
A fenomenologia genética retém nossa atenção especialmente porque coloca a fenomenologia da constituição diante de sua zona de sombra e, por conseguinte, diante de seus próprios limites: os da doação e da constituição. Interrogar o modo de doação e de constituição do sujeito faz emergir o reverso dessa filosofia do ato: não há doação senão sobre o fundo de uma pré-doação; do mesmo modo, não há constituído senão sobre o fundo do inconstituível.
Pré-doação e inconstituível — as páginas que seguem procurarão, por um lado, reconstituir o caminho que levou o próprio Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
a reconhecer, sob o nome de “facticidade”, os limites de um pensamento da intencionalidade, e, por outro, compreender o tour de force da análise husserliana, que consiste, face a um sujeito que sempre já se precedeu a si mesmo sob a forma do mundo, do tempo ou do outro, em transcendentalizar esses fatos mundanos contingentes, que correm o risco de contaminar a pureza do transcendental.
É essa tensão extrema do texto husserliano que aqui se deseja mostrar: como, de um lado, o sujeito concreto traz em si uma dimensão de passividade e, por isso, já não pode dispor inteiramente de si; e como, de outro, essa passividade reconhecida por Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
é recuperada por um transcendentalismo extremo.
A passividade, tal como aqui entendida, cobre um campo mais amplo do que os conceitos de “síntese passiva” e “intenção passiva” tematizados no volume XI das Husserliana, intitulado Analysen zur passiven Synthesis (APS). Com efeito, ainda que Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
se afaste da estética kantiana ao atribuir à “estética transcendental” o direito de fundar a ontologia de um mundo possível em geral — na unidade sintética passiva de um mundo que essa fenomenologia da sensibilidade põe em evidência —, e ainda que a experiência originária se emancipe das categorias do pensamento predicativo, o quadro que orienta essa reflexão continua sendo o de uma teoria do conhecimento, que não permite à síntese passiva autonomizar-se verdadeiramente em relação à intenção de ato.
Ao contrário, há em Husserl
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Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
— parece-nos — uma autêntica reflexão sobre a passividade precisamente onde ele se vê obrigado a libertar-se do jugo desse enquadramento gnosiológico, que nada mais é que o da correlação noético-noemática. Se Husserl
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Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
tematiza o problema da passividade sob o conceito de “síntese passiva”, este opera num contexto mais amplo, o da pré-doação (Vorgegebenheit): é ela que, colocando a fenomenologia diante de seus próprios limites — os de uma doação que sempre já se precedeu, de uma doação cujo sentido é ser sempre já dada —, obriga Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
a pensar uma “síntese passiva”.
A passividade encontra, assim, o seu lugar quando a fenomenologia já não toma por fio condutor o objeto, mas o próprio sujeito que o constitui, dedicando-se ao modo de doação desse sujeito a si mesmo. Procurar-se-á, portanto, iluminar esse pensamento da gênese à luz de diversos textos das décadas de 1920 e 1930 — período em que Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
descobre e aperfeiçoa sua concepção de Lebenswelt (mundo da vida).
Mas, sendo impossível traçar uma fronteira nítida entre uma “fase estática” e uma “fase genética” da fenomenologia — pois o próprio Husserl
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Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
nunca deixou de insistir na complementaridade entre estrutura e gênese —, deter-nos-emos também em textos ditos “estáticos”, como as Lições sobre o tempo e as Ideen II, nos quais já desponta uma concepção temporal do sujeito.
Além disso, recorreremos a certos manuscritos inéditos, úteis para compreender o que se busca designar sob o termo vida. O grupo C dos manuscritos revelar-se-á particularmente interessante, pois as reflexões do último Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
sobre o presente vivo (lebendige Gegenwart) são, em última instância, menos uma reformulação do problema da temporalidade do que uma interrogação incessantemente retomada sobre a subjetividade, sobre o seu sentido último.
Ao pôr em evidência o deslocamento que ocorre, nos anos 1920, do ato de consciência para a vida intencional, revelar-se-á uma passividade da própria consciência (cf. cap. I). Procurar-se-á distinguir, de um lado, a experiência como modo de doação do objeto mundano e, de outro, a pré-doação anônima e irrefletida da vida pré-mundana (cf. cap. II).
Examinar-se-á, em seguida, a profundidade dessa vida originária, interrogando-se a imortalidade do sujeito transcendental e observando como o império imperturbável do transcendental — a permanência da temporalização — resiste às rupturas factuais do fluxo; e como a facticidade originária — seja o não-fundamento do mundo, seja o núcleo hilético da subjetividade — é recuperada no interior da esfera intencional do sentido (cf. cap. III).
Por fim, acompanhar-se-á Husserl
Husserl
Edmund Husserl
EDMUND HUSSERL (1859-1938)
em sua ascensão arqueológica até essa experiência originária afetiva que ele denomina “presente vivo”, a fim de compreender como pôde ele pôr a descoberto uma dimensão de facticidade originária — inicialmente sob a forma dessa vida pré-aparente e pré-mundana — para logo em seguida recobri-la, conferindo-lhe um sentido transcendental (cf. cap. IV).
Será, portanto, necessário interrogar a ambiguidade dos textos husserlianos: de um lado, o reconhecimento dos limites de um pensamento reflexivo e o seu enraizamento em uma vida passivamente pré-dada; de outro, o primado da atualidade, mesmo quando esta, assumindo a figura do telos da história transcendental da razão, é projetada no infinito.
Ver online : Edmund Husserl
MONTAVONT, Anne. De la passivité dans la phénoménologie de Husserl. Paris: PUF, 1999.
[1] O motivo da passividade ofereceria, assim, a possibilidade de questionar a crítica radical que Merleau-Ponty dirige a Husserl em uma nota de trabalho de O Visível e o Invisível, Paris, Gallimard, 1964 (abreviado como VI), p. 297 e segs.: «Toda a análise husserliana está bloqueada pelo quadro dos atos que a filosofia da consciência lhe impõe. É necessário retomar e desenvolver a intencionalidade fungierende ou latente, que é a intencionalidade interior ao ser. Isso não é compatível com a “fenomenologia”, ou seja, com uma ontologia que submete tudo o que não é nada a se apresentar à consciência através de Abschattungen e como derivado de uma doação originária que é um ato, ou seja, um Erlebnis entre outros. […] É preciso tomar como primordial, não a consciência e seu Ablaufsphänomen com seus fios intencionais distintos, mas o turbilhão que esse Ablaufsphänomen esquematiza, o turbilhão espacializante-temporalizante (que é carne e não consciência diante de um noema).»
[2] M. Merleau-Ponty, op. cit., p. 274 e segs.
[3] Cf. Experiência e Juízo. Investigações sobre a Genealogia da Lógica, redigido e editado por L. Landgrebe, Hamburgo, Glaassen & Goverts, 1948, trad. franc. por D. Souche, Paris, PUF, 1970 (abreviado como EU), p. 70. A reformulação do problema da receptividade e da espontaneidade permite, portanto, a Husserl romper com a definição kantiana da receptividade como mera capacidade de receber impressões sensíveis: ela se torna, ao contrário, o nível mais baixo da espontaneidade do eu.
[4] Cf. Hua I Meditações Cartesianas e Conferências de Paris, ed. por S. Strasser, 1930, trad. franc. por G. Peiffer e E. Lévinas, Paris, Vrin, 1947 (abreviado como CM), p. 67.
[5] J. Derrida destacou a generalidade do problema da passividade e da atividade em Introdução à Origem da Geometria, Paris, PUF, 1974 (2ª ed.), p. 101.