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Figal (2005:217-219) – culpa

[…] A experiência da “culpa” [Schuld] é analisada por Heidegger na medida em que ele diferencia inicialmente quatro aspectos diversos da significação de “culpado” e, então, os condensa em uma determinação formal. “Ser culpado” [Schuldigsein] significa, por um lado: “estar em débito por algo”, ou seja, não ter arranjado ou restituído algo determinado. Significa, além disso: “ter culpa em algo”, ou seja, “ser-causa ou autor de algo” (ST, 282). Essas duas significações não se implicam mutuamente. Pode-se provocar inteiramente uma determinada situação sem que se esteja nela em débito com alguém por algo, e é igualmente possível estar em débito sem que o [218] próprio comportamento tenha sido a “causa” disso. Desses dois aspectos significativos também pode ser por isso diferenciado um terceiro: o elo entre “estar em débito ou ter débitos” e “ser a causa”. Nesse caso, Heidegger fala em um “tornar-se culpado” (ST, 282). Isso pode, uma vez mais, ser compreendido jurídica ou moralmente ou jurídica e moralmente, de modo que esses dois aspectos também são em princípio mutuamente independentes: alguém pode, por exemplo, ter se chocado contra uma regra de trânsito sem que tenha se tornado culpado junto a um outro no sentido de “que o outro foi colocado em risco em sua existência, foi desviado de seu próprio caminho ou teve esse caminho rompido” (ST, 282), e, do mesmo modo, esse tornar-se culpado não é necessariamente um crime”. O “conceito formal de ser culpado” que abarca todos os quatro aspectos significativos é então: “Ser o fundamento para uma falta [Mangel] no ser-aí de um outro, de modo em verdade que esse ser-fundamento [Grundsein] mesmo se determine como ‘faltoso’ a partir de seu para-quê. Essa falta aponta para a insuficiência ante uma requisição que se passa junto ao ser-com os outros existente” (ST, 282).

O que Heidegger diz aqui só é compreensível se se consegue clarificar a significação da expressão “ser-fundamento” — uma expressão que não foi explicitada mais detidamente por ele. É natural compreender aí “fundamento” como uma tradução de ἀρχή e dizer de maneira consonante com a determinação aristotélica do homem como princípio e fundamento de ações (ἀρχή τῶν πράξεων) que o “ser-fundamento de uma falta na existência do outro” é uma determinação que só diz respeito ao ser-com [Mitsein] e ao co-ser-aí [Mitdasein]. Isso talvez pareça, à primeira vista, trivial. Mas exatamente como Aristóteles não quer dizer que o homem é a causa por si determinável para uma classe de movimentos que se denominam “ações”, Heidegger não quer dizer que o fato de se ser, na medida em que se é culpado, causa de uma falta no ser-aí de um outro precisaria ser equiparado às outras causas, às quais podem ser reconduzidas uma falta. O homem é muito mais princípio e fundamento de ações no sentido de que somente movimentos que são cognoscíveis como combinação entre διάνοια e ὄρεξις podem se chamar “ações”. Essa combinação só há no homem, de modo que se define em uma determinação adequada das ações ao mesmo tempo aquilo que é princípio e fundamento das ações. [1] O mesmo estado de coisas tem lugar com o ser-culpado: a falta aqui não é reconduzida simplesmente a uma causa, mas sempre já compreendida como “insuficiência ante uma requisição”, e o ser-aí como ser-com e como co-ser-aí é, então, o fundamento da culpa no sentido de que só junto ao co-ser-aí são feitas requisições que podem permanecer sem serem cumpridas e de que nós [219] sempre assumimos uma atitude no ser-com em relação às requisições dos outros. “Ser fundamento de uma culpa” e “ser causa de uma culpa” não são o mesmo. Senão também seria incompreensível em que medida a determinação formal que Heidegger dá pode, ao mesmo tempo, abarcar uma culpa que não foi “causada” por alguém mesmo. Além disso, o termo “causa” não é aqui visado no sentido de uma teoria causalista da ação, mas ele mesmo só pode se tornar inteligível a partir do fenômeno da culpa: se consideramos alguém como “causa” de um determinado estado de coisas que diz respeito a alguém, não perguntamos por em que medida ele foi o princípio de um movimento que conduziu então a esse estado de coisas; nós o tomamos muito mais imediatamente como responsável por esse estado de coisas.


Ver online : Günter Figal


FIGAL, Günter. Fenomenologia da Liberdade. Tr. Marco Antonio Casanova. São Paulo: Forense, 2005


[1Cf., quanto a isso, Wieland (1970), p. 60.