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L’Illumination du Coeur

Allard l’Olivier (IC:53-58) – Os Objetos sensíveis

I. A Realidade Sensível e a Constatação Originária

  • A constatação originária, que ocorre no instante presente e no local concreto onde o sujeito se encontra, envolve a percepção sensorial imediata de um conjunto determinado de coisas, como uma mesa, livros, árvores ou um cão.
  • Esta constatação caracteriza-se por ser uma consciência e atenção sustentadas, uma suspensão do tempo dentro do tempo, que dura enquanto o sujeito mantém, numa estupefação lúcida, a reunião das suas energias, permitindo-lhe constatar a sua própria existência, a presença de coisas sensíveis e a sua percepção através da visão pela radicalidade subjetiva.
  • Durante esta constatação, o sujeito é simultaneamente habitado pelo sentimento de que estas coisas existem e pelo sentimento contraditório de que elas não existem, uma vez que a sua única certeza existencial é a de que ele próprio existe enquanto profere radicalmente o sum.
  • Define-se "realidade sensível stricto sensu" como o conjunto de todas as coisas que, aqui e agora, a radicalidade subjetiva do sujeito visa através dos sentidos, excluindo tudo o que não é percebido hic et nunc, como coisas recordadas ou nunca percebidas, mas representadas como dotadas de uma natureza semelhante.
  • É crucial distinguir entre a realidade sensível stricto sensu e a realidade sensível representada, pois, na ordem das coisas sensíveis, o que existe em primeiro lugar é o que é imediatamente percebido, sendo que o resto só pode ser considerado existente por um "ressalto" da qualidade existencial do percebido para o representado, cuja periferia se perde no mítico.
  • A "realidade sensível lato sensu" designa o conjunto coerente que compreende tanto a realidade sensível stricto sensu como a sua representação, incluindo memórias e imaginações de coisas passadas, futuras ou nunca experienciadas.

II. O Corpo Próprio como Centro da Experiência Sensível

  • Na realidade sensível stricto sensu, distinguem-se principalmente dois tipos de objetos: as coisas que o sujeito não é de modo algum e o seu próprio corpo, que é parcialmente percebido e está implicado na sua atividade sensorial, pertencendo simultaneamente à realidade sensível e ao "ser-que-eu-sou".
  • O corpo próprio é conhecido sensorialmente de maneira mais íntima, mas é apenas no instante da constatação originária que este conhecimento adquire uma penetração suficiente, revelando-se como um aparelho sensorial que ordena o campo perceptual.
  • Este campo perceptual, ordenado pelo corpo e englobando tudo o que ele abrange, denomina-se "aqui", um lugar significativo apenas em relação ao corpo que é o seu foco, ao qual corresponde um "agora" que é o instante presente da constatação.
  • O corpo próprio, experienciado como estendido, define um espaço radical que é a origem do espaço concreto no qual o sujeito se move e cujo conteúdo muda constantemente, sendo todo o objeto sensível um corpo análogo ao corpo próprio, apreendido intuitivamente na sua alteridade corporal misteriosa.
  • O espaço concreto, distinto do espaço abstrato geométrico ou do espaço representado, tem a sua origem no corpo próprio, define-se em relação a ele e mede o campo perceptual hic et nunc, que é vago, indeterminado, mas ordenado.

III. A Intuição Sensível e a Representação Prévia

  • O conjunto global do que é percebido hic et nunc durante a constatação originária não é um caos informe de sensações, mas um todo inteligível, simultaneamente familiar e insólito, insólito por se apresentar como se visto pela primeira vez, mas familiar porque assenta numa representação adquirida, sempre prévia, que lhe confere inteligibilidade.
  • A constatação originária é uma compreensão do mundo onde o sujeito se encontra, sancionando um estado do seu saber, sempre já presente, sobre esse mundo, um saber que, embora fragmentário e incerto, é instantaneamente mobilizado para decifrar e reconhecer o que é dado a conhecer.
  • A conhecimento sensorial, sendo uma conhecimento intuitiva, um simples "olhar" lançado sobre as coisas, só se realiza de modo consciente em ligação com uma representação que confere inteligibilidade aos seres assim intuídos, estando sempre disponível um saber "já aí" que permite esta decifração instantânea.

IV. A Priori ou Intuído: Uma Crítica à Concepção Kantiana de Espaço e Tempo

  • Perante a doutrina kantiana que apresenta o espaço e o tempo como formas a priori da intuição, impõe-se distinguir entre o espaço e o tempo dados na experiência sensível hic et nunc e o espaço e o tempo enquanto estruturas de uma representação sem a qual a realidade sensível stricto sensu não teria sentido.
  • Por um lado, é verdade que a intuição das coisas sensíveis requer uma representação sempre já presente para que a realidade sensível tenha um sentido inteligível, sendo esta representação anterior à intuição hic et nunc; por outro lado, o espaço e o tempo intuídos na constatação originária, ligados à presença corporal e móvel do sujeito, não são os da representação.
  • A intuição da realidade sensível é, num sentido preciso, anterior à representação, pois sem ela não haveria representação do sensível, mas paradoxalmente, uma certa representação doadora de inteligibilidade é sempre anterior a toda a percepção intuitiva do sensível.
  • A constatação originária revela primacialmente o mistério da alteridade existencial dos corpos percebidos em relação ao corpo próprio, uma alteridade que se manifesta no "agora" e "aqui" do espaço e tempo concretos, os quais parecem ser antes objetos imediatos dessa intuição do que condições a priori do espírito.
  • A expressão kantiana de que os objetos estão "fora de mim" é posta em causa, pois o sujeito está corporalmente "dentro" do mundo, não havendo uma exterioridade absoluta, mas antes uma relação de alteridade na unidade viva da experiência existencial, onde o corpo próprio e os outros corpos se revelam nem "em mim" nem "fora de mim", mas simplesmente "outros que eu".

Ver online : Allard l’Olivier


[ALLARD L’OLIVIER, André. L’illumination du coeur. Paris: Ed. Traditionnelles, 1977]