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L’Illumination du Coeur

Allard l’Olivier (IC:37-41) – Constatação original

A Evidência Relativa

I. A Transposição Semântica e Filosófica do Termo "Visão"

  • A utilização do termo "visão" e seus correlatos serve como imagem inicial para uma discussão mais ampla sobre a percepção e o conhecimento.
  • A visão pelos olhos do corpo figura qualquer percepção sensorial, sendo que o que é dito sobre a vista pode ser dito, mutatis mutandis, da audição, do tato, do olfato ou do gosto, estabelecendo assim a "visão" sensível na sua generalidade.
  • É possível e necessário operar uma transposição decisiva do conceito, na qual a visão pelos olhos do corpo figura comumente qualquer percepção, ou seja, toda a tomada ou apreensão de um objeto por meio dos sentidos abertos às coisas sensíveis.
  • Por um consenso universal, o termo "visão" estende-se a qualquer tipo de apreensão através da qual um conhecimento ou um reconhecimento se realiza, um uso que se estende até ao conhecimento intelectual, como atesta a citação de São Tomás de Aquino: "Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus".
  • Neste sentido, o termo "visão" convém para expressar o ato pelo qual o espírito considera e inspeciona qualquer objeto de pensamento imediatamente oferecido a ele.
  • A conexão etimológica entre "ver" e "saber" é fundamentada através da análise da raiz indo-europeia VID, da qual derivam palavras como o alemão wissen (saber), Weisheit (sabedoria), o grego eidos (aspecto, forma, ideia) e oida (saber), e o sânscrito vêda (conhecimento) e vidyut (relâmpago).
  • A raiz VID = FID = ID cobre um espectro de noções interligadas: o ato de ver; o ato de saber; a aparição à vista; o esplendor ou relâmpago que, ao iluminar, dá a ver e faz saber; a forma daquilo que aparece, a sua beleza; e a maneira de ser, de se apresentar à vista.

II. A Constatação Originária e a Dualidade da Posição do Eu no Mundo

  • O início da busca pela verdade dá-se no instante em que a clarividência revela ao ignorante a profunda miséria da sua ignorância, onde a constatação originária se realiza em virtude do ser real dado.
  • O sujeito entra subitamente na consciência aguda e estupefacta do ser de "tudo isso", abrangendo a si mesmo e ao mundo das coisas sensíveis, sem ainda poder discernir onde reina a ilusão, fonte de erro e de ignorância.
  • A relação entre o eu e o mundo é dupla e aparentemente paradoxal: por um lado, o eu está contido no mundo, como um ser corporal entre outros, com um lugar e um papel, movendo-se nele e preocupado com a sua subsistência; por outro lado, o eu é o continente deste mundo, na medida em que o representa na sua total extensão espacial e temporal.
  • O sujeito é contido naquilo que contém e contém aquilo mesmo que o contém, sendo estes dois aspectos do "todo" simultâneos e potencialmente complementares em vez de contraditórios.
  • Contido no mundo, o eu existe realmente no seio de um mundo de existentes reais; contendo o mundo, o eu existe realmente a pensar um mundo de seres sensíveis que, porque são pensados, existem apenas como determinações do seu pensamento.
  • Toda a certeza inerente à constatação originária se resume na certeza de que o eu existe e na certeza de que coisas são, sabendo que objetos se oferecem às visadas do que, na raiz do seu ser, o especifica como sujeito puro e radical.

III. O espanto filosófico como estupor perante o ser

  • A constatação originária é espanto, porque é clarividência, e este espanto transforma-se rapidamente em estupefação perante a questão de saber o que se veio fazer neste mundo, se se está no mundo e contido por ele, e o que significa este mundo estranho e não reconhecido.
  • A estupefação e a angústia que a acompanha provêm de um sentimento intenso de fatalidade, nascido da consciência de ser inerente à clarividência, onde o espetáculo que se oferece ao sujeito se assemelha a um espetáculo de sonhos.
  • O espanto é o início de toda a filosofia, como afirma Sócrates no Teeteto, mas nem todos os espantos são da mesma qualidade, sendo melhor espantar-se por se estar ali, como este eu específico, e testemunha deste universo, do que pelas estrelas ou pela germinação das plantas.
  • A filosofia começa no instante em que aquele a quem os olhos se abriram constata que coisas são e que ele próprio existe, e que isto mesmo, que era evidente para os cegos sem espanto, é, na verdade, de uma estranheza radical e perturbadora, uma revelação fatal sob cujo peso vacila aquele a quem é feita.
  • Esta tomada de consciência, estupefação e solidão, onde nenhum objeto apresenta um rosto familiar, mas todos erguem a sua presença estranha, enigmática e fatal, é o que permite ao sujeito medir a sua ignorância fundamental, transitando do estado de ignorante absoluto, que não sabe que não sabe, para o estado de saber que ignora.

IV. O Saber Herdado e a Certeza Inabalável do "Sum"

  • O sujeito, agora sagazmente ignorante, dispõe do saber polimático acumulado durante o tempo da sua ignorância absoluta, um saber que é ambíguo, nem absolutamente vão nem absolutamente certo.
  • Tal como não se pode contestar que se é um ser que percebe coisas sensíveis e que pensa sobre elas, também não se pode contestar que se dispõe deste saber herdado que se estende por múltiplos domínios, especialmente sobre a percepção sensorial e o pensamento.
  • É necessário pôr ordem neste saber herdado, separando o verdadeiro do falso, especialmente acerca das percepções sensoriais e do pensamento, mantendo-o suspeito e examinando-o com circunspecção, uma vez que excede a dupla certeza fundamental: "eu existo" e "coisas são".
  • O início da luz deu-se no interior do sujeito, e é nele, se for possível, que toda a luz deve ser feita, mantendo-se a incerteza sobre as coisas do mundo e o saber que se tem delas até então.
  • A certeza fundamental e inabálavel é a de que "eu existo", o núcleo infracassável da constatação originária, que não é um pensamento de ser, mas um ato de ser, no qual o sujeito surge de um fundo que não apreende, emerge e se afirma como sujeito pensante e percipiente.
  • Existir, ou melhor, ek-sistir, significa mais do que o simples verbo ser, significando emergir, levantar-se de, surgir ativamente, sendo que o sujeito que visa existe de modo seguro no modo da ex-sistência, manifestando-o ao proferir "sum".
  • Para além da certeza da própria existência, constata-se que "coisas são", entre as quais algumas parecem dotadas de existência, sendo "coisa" definida como todo o ser, percebido ou pensado, objetivamente "lá diante" do princípio existenciador que, na raiz do ser, profere "eu".
  • Por estar "lá diante" deste princípio – por lhe ser objetada – a coisa, percebida ou pensada, é imediatamente conhecida como presente, sendo um objeto, um Gegenstand, visado pelo ato do proferente que tem consciência de estar ligado a ela.

[ALLARD L’OLIVIER, André. L’illumination du coeur. Paris: Ed. Traditionnelles, 1977]